Se fosse viva, Ana Cristina Cesar estaria comemorando mais um ano de vida hoje. Poeta, ensaísta e tradutora (muitas vezes associada à Poesia Marginal), a autora de "A Teus Pés" – seu livro mais conhecido – é dona de um estilo inconfundível. O tom confessional de seus versos, por vezes lembrando conversas ao telefone ou até pedaços de diários (falsos ou não), aliado ao cuidado que tinha com os textos, são algumas marcas pessoais da mulher de “muitas camadas”. Essas características se fazem presente também na edição “Ana Cristina Cesar – poética” (Companhia das letras), lançada em 2013. Quantas camadas uma pessoa possui? E se essa pessoa usa óculos, quantas camadas a mais ela ganha? E se veste camisa rosa; por trás de cada fio ela ganha outras mais? Se tratando da poesia de Ana Cristina Cesar, as camadas são muitas. Não estamos falando de personalidades dispersas. Seus escritos são capazes de mostrar quantos podemos ser, revelando intimidades das mais cotidianas, que pertencem a muitos e ao mesmo tempo tão únicas. É como estar naquela festa de Natal em família e achar-se “bonita que é um desperdício”. As nuances da literatura de Ana C. foram reunidas na edição [necessária] Ana Cristina Cesar – poética, lançada pela Companhia das letras (2013, p. 503). Necessária, pois, em vida, seu único livro publicado por uma editora foi A teus pés (Brasiliense, 1982). A maior parte de sua produção esteve dispersa; guardada em pastas, da posse de amigos ou reproduzida nos formatos artesanais, marca da geração mimeógrafo. Este grupo, também chamado por Elio Gaspari de Geração 77 ou poetas marginais, teve como nomes principais Chacal, Cacaso, Francisco Alvim e “aquela loura donzela que se chama Ana Cristina Cesar”. Mesmo estando ligada a esses grupos, podemos dizer que seu impulso literário vinha de um contexto mais macro: o da contracultura, com características únicas, que fogem da ideia de escrita de improviso. Professora de literatura, tradutora de Sylvia Plath e Emily Dickinson e leitora de Walt Whitman, sua escrita vinha carregada de referências clássicas e um cuidado obsessivo com o texto. A poética nos leva a um encontro completo com Ana C., um encontro que dá vontade de voltar mais vezes, de saber mais sobre sua obra e também sobre a pessoa que aos 30 anos de idade, em 1981, se jogou da janela de seu apartamento e interrompeu sua contribuição, que se mostrava como uma das mais promissoras para a poesia. Promessa reforçada por conhecidos e amigos como Heloisa Buarque de Hollanda, Armando Freitas Filho e Caio Fenando Abreu. Na capa de edição de A teus pés, Caio a denominou como um dos “escritores mais originais, talentosos, envolventes e inteligentes surgidos ultimamente na literatura brasileira”. Os textos revelam ao mundo a intimidade tão assustadora das mulheres. Ana traduz, num deboche tão amável, os atos que “escorrem como líquidos lubrificando passagens ressentidas” (p.198). A antologia pode ser muito bem sua leitura de cabeceira; bíblia em que se abre uma passagem e, nesse caso, troca-se a moral pelo rubor, por encontrar ali uma total compreensão, como se aquele seu segredo estivesse em domínio público. Ana Cristina Cesar - poética está dividido em seções de temporalidade e temáticas: Cenas de abril (1979); Luvas de pelica (1980); A teus pés: prosa/poesia (1982); inéditos e dispersos: poesia/prosa (1985); antigos e soltos: poemas e prosas da pasta rosa – seleção; e visita à oficina. Contudo as divisões são apenas marcações. Misturam-se todos os gêneros de texto, desenhos, manuscritos, confissões e parte de seus diários ou cadernos terapêuticos, como os chamava, e no qual estão fragilidades, medos e nossos sentimentos mais comuns, porém mais escondidos. Ali é permitido dizer “não quero ir pra minha casa, onde me sinto independente demais (é como excesso). Volto para a casa de mamãe”. Sua literatura abate. Quando Sylvia Plath, de quem Ana era tradutora, dizia “a noite saio a caça de algo para amar”. A outra se faz transeunte moderna em mocidade independente. Pela primeira vez infringi a regra de ouro e voei pra cima sem medir as consequências. Por que recusamos ser proféticas? E que dialeto é esse para a pequena audiência de serão. Voei pra cima: é agora, coração, no carro em fogo pelos ares, se uma graça atravessando o estado de São Paulo, de madrugada, por você, e furiosa, nesta contramão. Aos nossos pés está Ana C. que não se roga, entrega-se, despida “querendo a glória, a outra cena à luz de spots”. Este ano sua obra será mais falada do que nunca. Ela será a autora homenageada da 14ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que ocorrerá de 29 de junho a 3 de julho. Gabriela Sobral.
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Julho 2017
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