como dizê-lo, como continuar, esfacelar a razão repetindo que não é somente um sonho, que se o vejo em sonhos como a qualquer de meus mortos, ele é outra coisa, está aí, dentro e fora, vivo se bem que o que vejo dele, o que ouço dele: a doença o aperta, fixa-o nesta última aparência que é minha recordação dele há trinta e um anos; assim está agora, assim é Por que é que você vive se adoeceu outra vez, se vai morrer outra vez? E quando morrer, Paco, o que vai acontecer entre nós dois? Vou saber que você morreu, vou sonhar, já que o sonho é a única zona onde posso vê-lo, que o enterramos de novo? E depois disso, vou deixar de sonhar, saberei que está morto de verdade? Porque já faz muitos anos, Paco, que você está vivo aí onde nos encontramos, mas com uma vida inútil e murcha, desta vez sua doença dura interminavelmente mais que a outra, passam-se semanas ou meses, passa Paris ou Quito ou Genebra e então vem Cláudio e me abraça, Cláudio tão jovem e garoto chorando quieto no meu ombro, avisando-me que você está mal, que suba para vê-lo, às vezes é um café mas quase sempre é preciso subir a escada estreita daquela casa que já puseram abaixo, de um táxi olhei há um ano aquele quarteirão de Rivadavia na altura de Once e soube que a casa já não estava lá ou que a haviam reformado, que faltam a porta e a escada estreita que levava ao primeiro andar, aos quartos de pé-direito alto e de gessos amarelos, passam-se semanas ou meses e de novo sei que tenho de ir vê-lo, ou simplesmente o encontro em qualquer lugar ou sei que está em qualquer lugar embora não o veja, e nada acaba, nada começa nem acaba enquanto durmo ou depois no escritório ou aqui escrevendo, você vivo para quê, você vivo por quê, Paco, aí, mas onde, meu velho, onde e até quando. Julio Cortázar, "Aí, mas onde, como?", in Octaedro.
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Julho 2017
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