Mulheres na literatura: existe uma escrita feminina?Gabriela Sobral Narrar é possuir discurso. E qual discurso queremos construir e representar, enquanto mulheres escritoras? Por isso, mais do que nos questionarmos acerca da existência ou não de uma escrita feminina, acredito que o exercício mais válido seja problematizarmos a que se propõe esta escrita. Digo isso pois a narrativa nos permite (re) existir e (re) organizar a construção do conhecimento; erigir novas estruturas simbólicas, a partir da auto- representação.
A teórica Teresa de Lauretis identifica nas tecnologias do gênero (cinema, fotografia, produção acadêmica e literatura) um campo de produção simbólica, que, por vezes, reafirma estereótipos, como o da escrita feminina – esse lugar do sensível, do amor romântico, envolvida naquela bruma cor de rosa. Não que não possa ser, contudo a possibilidade de um único lugar limita o espectro da produção literária, que pode compreender outras vertentes como a ficção científica e de terror; só pensarmos que uma das mais importantes ficções de horror – Frankenstein – foi escrita pela jovem Mary Shelley. Dessa maneira, pela constância com que as tecnologias e mídias reproduzem estereótipos e imagens de objetificação, muitas vezes, não representadas pelas próprias mulheres, abraçar a criação de uma estética feminina na escrita pode nos levar a incorrer no erro da auto-objetificação e naturalização de certos comportamentos, que inibem e restringem ainda mais a nossa capacidade criadora, em um ambiente já permeado por relações de poder desiguais. Nota: Por isso gosto de falar de uma literatura de mulheres, de uma escrita de mulheres. A escolha por este termo nos tira de uma certa proposta estetizante e nos coloca no lugar de produtoras, revisoras, editoras. Estamos, agora, na ação, na produção do conhecimento e não na busca de nos enquadrarmos em um gênero literário imposto e construído de maneira nebulosa. O papel da musa já foi superado em certas proporções, nos cabe, no momento atual, alcançar a auto-representação e tomar as rédeas da das nossas obras, livros, fanzines, blogs ou seja qual for a materialidade do nosso ofício. Essas problemáticas, que há algum tempo eu vinha gestando, extrapolaram o pensamento e vieram parar aqui, neste ensaio, quando me deparei com o livro “Um teto todo seu” (188 pgs.), da Virginia Woolf, recentemente, reeditado pela editora Tordesilhas, com posfácio da crítica literária brasileira Noemi Jaffe. Nesta edição, estão organizadas palestras proferidas pela escritora inglesa na Newnham College e no Girton College, instituições dedicadas apenas à alunas da Universidade de Cambridge. Woolf vai tecendo um discurso que nos faz pensar como se construiu o silenciamento e adestramento da capacidade criativa das mulheres e nos leva a romper e buscar a representatividade do discurso. Imaginem como essas questões não eram processadas, tendo como contexto o início do século XX, quando mulheres não eram sujeitas de qualquer direito cidadão. Agora, na contemporaneidade, em que a cultura é esse tudo, epicentro das práticas sociais e de disputas de poder pelo conhecimento e pelo lugar de fala; devemos, enquanto escritoras, buscar nosso espaço, nossas territorialidades e reivindicar tantas outras aberturas nos processos do mercado editorial. Voltando ao livro “Um teto todo seu”, logo de início, Virginia Woolf constrói a alegoria do espelho. Segundo ela, homens se colocam em situações de poder, pois se veem em dimensões maiores diante da imagem inferiorizada da mulher. Dessa maneira, constroem uma figura de si, detentora exclusiva da vida pública, na qual é possível publicar, ter renome ou entrar para a historiografia da literatura, como se a eles fosse dado, naturalmente, o dom da reflexão e da arte. “A mulheres têm servido há séculos como espelhos, com poderes mágicos e deliciosos de refletir a figura do homem com o dobro do tamanho natural” (pg.54), o que tira delas a autoconfiança. “É por isso que tanto Napoleão quanto Mussolini insistiam tão enfaticamente na inferioridade das mulheres, pois, se elas não fossem inferiores, eles deixariam de crescer [...] pois se ela resolver falar a verdade, a figura refletida no espelho encolherá; sua disposição de vida diminuirá” (pg.55). A escrita de mulheres deve existir enquanto construtora de história, enquanto ofício, enquanto capacidade criativa, enquanto lugar de fala que se propõe a nos colocarmos como tais (escritoras) e não para nos rendermos a um nicho de mercado, quando há conveniência. Woolf traz, ainda, a questão de que as mulheres necessitariam de uma estrutura material (casa-dinheiro) para produzir. Sabemos que ela reflete a partir de uma condição burguesa, logo, há outras nuances a serem consideradas. Além disso, estamos construindo a temática em outro tempo e espaço que também pede novos olhares. De qualquer maneira, o texto nos leva a refletir que o teto que precisamos se expande e não mais se restringe a possuir um quarto ou uma moradia, e sim angariar meios para se conquistar um território muito mais disputado: o do discurso e o dos espaços representativos da vida. Pois o silêncio não pode existir; é preciso dar movimento à nossa imagem no espelho para projetar novas dinâmicas e realidades às mulheres que escrevem.
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Julho 2017
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