REVELAÇÕES para Jacques Vallée frio nas fronteiras de topázio abandonei-me ao mês do Deus do vento floresce no meu corpo um ponto secreto entre os cometas vivos do êxtase Roberto Piva.
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DESFEITA cortei cabelo, unhas e todos os carboidratos. os meus pulsos, porém, ainda estão intactos. Iara Maria Carvalho.
DISCURSO no dize-tu-direi-eu havia um que dizia quer dizer é como quem diz que o mesmo é não dizer nada tenho dito Alexandre O´Neill
Velho Estás morto, estás velho, estás cansado! Como um suco de lágrimas pungidas Ei-las, as rugas, as indefinidas Noites do ser vencido e fatigado. Envolve-te o crepúsculo gelado Que vai soturno amortalhando as vidas Ante o repouso em músicas gemidas No fundo coração dilacerado. A cabeça pendida de fadiga, Sentes a morte taciturna e amiga, Que os teus nervosos círculos governa. Estás velho estás morto! Ó dor, delírio, Alma despedaçada de martírio Ó desespero da desgraça eterna. Cruz e Sousa.
O SEGREGO [Jardim Amália Rodrigues, 1961] Vão alguns em busca de beleza, dizem. Herberto Helder Os meus dedos já souberam de cor a perfeição. A morte era o menos. Só a beleza nos parecia intolerável se não a despedaçássemos, voz por voz, compasso a compasso, numa harmonia mais dócil. Menos urgente do que os músculos que ensaiávamos todos os dias sem nos tocarmos. Agora ouço outras mãos a tactear o mesmo mistério e é como segredar, pianississimo, ao ouvido de alguém demasiado longe, quando afinal adormeceste apenas dentro de mim, com as garras cravadas ao de leve na memória. Inês Dias.
Arte poética [A Charles Morice] Antes de tudo, a Música. Preza Portanto, o Ímpar. Só cabe usar O que é mais vago e solúvel no ar Sem nada em si que pousa ou que pesa. Pesar palavras será preciso, Mas com certo desdém pela pinça: Nada melhor do que a canção cinza Onde o Indeciso se une ao Preciso. Uns belos olhos atrás do véu, O lusco-fusco no meio-dia A turba azul de estrelas que estria O outono agônico pelo céu! Pois a Nuance é que leva a palma, Nada de Cor, somente a nuance! nuance, só, que nos afiance o sonho ao sonho e a flauta na alma! Foge do Chiste, a Farpa mesquinha, Frase de espírito, Riso alvar, Que o olho do Azul faz lacrimejar, Alho plebeu de baixa cozinha! A eloquência? Torce-lhe o pescoço! E convém empregar de uma vez A rima com certa sensatez Ou vamos todos parar no fosso! Quem nos dirá dos males da rima! Que surdo absurdo ou que negro louco Forjou em jóia este toco oco Que soa falso e vil sob a lima? Música ainda, e eternamente! Que teu verso seja o vôo alto Que se desprende da alma no salto Para outros céus e para outra mente. Que teu verso seja a aventura Esparsa ao árdego ar da manhã Que enche de aroma ótimo e a hortelã… E todo o resto é literatura. Paul Verlaine.
Resposta a um amigo com novidades de Lisboa em 1658 França está mui doente das ilhargas, Inglaterra tem dores de cabeça; Purga-se Holanda, e temo lhe aconteça Ficar debilitada com descargas. Alemanha lhe aplica ervas amargas, Botões de fogo com que convalesça; Espanha não lhe dá que este mal cresça; Portugal tem saúde e forças largas. Morre Constantinopla, está ungida; Veneza engorda e toma forças dobres; Roma está bem, e toda a Igreja boa. Europa anda de humores mal regida; Na América arribaram muitos pobres: estas as novas são que há de Lisboa. Gregório de Matos.
ANTES DO COMEÇO Ruídos confusos, claridade incerta. Outro dia começa. Um quarto em penumbra e dois corpos estendidos. Em minha fronte me perco numa planície vazia. E as horas afiam suas navalhas. Mas a meu lado tu respiras; íntima e longínqua fluis e não te moves. Inacessível se te penso, com os olhos te apalpo, te vejo com as mãos. Os sonhos nos separam e o sangue nos reúne: Somos um rio que pulsa. Sob tuas pálpebras amadurece a semente do sol. O mundo No entanto, não é real, o tempo duvida: Só uma coisa é certa, o calor da tua pele. Em tua respiração escuto as marés do ser, a sílaba esquecida do Começo. Octavio Paz.
De profundis amamus Ontem às onze fumaste um cigarro encontrei-te sentado ficámos para perder todos os teus eléctricos os meus estavam perdidos por natureza própria Andámos dez quilómetros a pé ninguém nos viu passar excepto claro os porteiros é da natureza das coisas ser-se visto pelos porteiros Olha como só tu sabes olhar a rua os costumes O Público o vinco das tuas calças está cheio de frio é há quatro mil pessoas interessadas nisso Não faz mal abracem-me os teus olhos de extremo a extremo azuis vai ser assim durante muito tempo decorrerão muitos séculos antes de nós mas não te importes muito nós só temos a ver com o presente perfeito corsários de olhos de gato intransponível maravilhados maravilhosos únicos nem pretérito nem futuro tem o estranho verbo nosso Mário Cesariny.
levo algum tempo para escrever modelos cartas comunicações ouvindo notas limpas ao fundo e vozes roucas também rasgadas o tempo urge nas telas e perdemos o horário do ônibus sempre inventando desculpas que nos acobertem nas repartições com gente insossa e desinteressante levo tanto tempo para gostar de alguém que já nem me surpreendo com a urgência que os outros impõem em nossas relações as notas continuam ao fundo e entre um ou outro copo de café vou descobrindo mais um pouco de um corpo a matéria distante geograficamente nomes próprios em canções despretensiosas ônibus atrasados e roupas encharcadas o suor diário das caminhadas apressadas vozes roucas nem tão rasgadas gritam na repartição. Rafael Braga.
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Julho 2017
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