CRETA impresso em naus a mão e o selo, labirintos a tinta, gramatura de vasos e carne o papel para o registro de uma via irretocável queimo pálpebras nos dedos, confuso este sinal enrodilhado calejo com verdes fôlegos o calcário do segredo e nem sempre, ao fim me safo Roberta Ferraz.
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ESTRADA Luanda Dondo vão, cento e tal quilômetros mangas e cajus marcos brancos meninos nus Branco algodão crescendo corpos negros na cacimba O Lucala corre confiante indiferente à ponte que ignora Verdes matas Sangram vermelhas acácias imbondeiros festejam o minuto da flor anual Na estrada o rebanho alinha pelo verde verde capim Adivinhados caqui lacraus de capacete giz Meninos se embalam em mães velhas de varizes: Rios azuis da longa estrada E é fevereiro sardões ao sol Cassoalala Eia Mucoso tão vazio outrora tão cheio agora Adivinhados permanecem lacraus caqui capacetes giz Não param as colheitas Que razão seriam fevereiro acácias sangrando vermelho verdes sisais cantando o parto da única flor? Não param as colheitas! José Luandino Vieira.
Queixas de um utente Pago os meus impostos, separo o lixo, já. não vejo televisão há. cinco meses, todos os dias rezo pelo menos duas horas com um livro nos joelhos, nunca falho uma visita à família, utilizo sempre os transportes públicos, raramente me esqueço de deixar água fresca no prato do gato, tento ser correcto com os meus vizinhos e não cuspo na sombra dos outros. Já não me lembro se o médico me disse ser esta receita a indicada para salvar o mundo ou apenas ser feliz. Seja como for, não estou a ver resultado nenhum. José Miguel Silva.
CABELOS QUE NEGROS Cabelo carapinha, engruvinhado, de molinha, que sem monotonia de lisura mostra-esconde a surpresa de mil espertas espirais, cabelo puro que dizem que é duro, cabelo belo que eu não corto à zero, não nego, não anulo, assumo, assino pixaim, cabelo bom que dizem que é ruim e que normal ao natural fica bem em mim, fica até o fim porque eu quero, porque eu gosto, porque sim, porque eu sou pessoa negra e vou ser mais eu, mais neguim e ser mais ser assim. Oliveira Silveira.
Uma parte de mim é todo mundo: outra parte é ninguém: fundo sem fundo. uma parte de mim é multidão: outra parte estranheza e solidão. Uma parte de mim pesa, pondera: outra parte delira. Uma parte de mim é permanente: outra parte se sabe de repente. Uma parte de mim é só vertigem: outra parte, linguagem. Traduzir-se uma parte na outra parte - que é uma questão de vida ou morte - será arte? Ferreira Gullar.
Instinto de negridade “Não há dúvida que uma literatura, sobretudo literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é o certo sentimento íntimo, que o torne homem de seu tempo e do seu país, ainda quando trate deassuntos remotos, no tempo e no espaço.” Machado de Assis Não há dúvida que a revolta de um povo massacrado Sobretudo um povo sacrificado na sala de espetáculos da casa grande Entre móveis de jacarandá, castiçais de prata e cortinas de seda Deve alimentar-se primeiramente das estocadas que ainda lhe ferem a alma Do desespero de espaço em que lhe emparedaram a alma Não há dúvida que o meu verso é também o meu quilombo ardente Atento às doutrinas absolutas que me querem escalpelar o pixaim Queimar na fogueira do esquecimento meus sentimentos íntimos Alisar minha língua no ferro do feitor que mantém acesa a fogueira Conformar meu silêncio na pasta quente para esticar meus gestos O que devo exigir de mim mesmo e do meu estilo antes de tudo É certo sentimento íntimo que me faz ciente do conflito que trago na cor da pele O que me torna um antipatriota convicto em conflito com o teu país e a tua cor É ser um aliciador dos corações curtidos no limão e no alho que lhes tempera Porque meu verso é levante ainda quando distante no tempo no espaço na composição do sangue. Nelson Maca.
estilos de época Havia os irmãos Concretos H. e A. consanguíneos e por afinidade D.P., um trio bem informado: dado é a palavra dado E foi assim que a poesia deu lugar à tautologia (e ao elogio à coisa dada) em sutil lance de dados: se o triângulo é concreto já sabemos: tem 3 lados. Cacaso.
Toda palavra Procuro uma palavra que me salve Pode ser uma palavra verbo Uma palavra vespa, uma palavra casta. Pode ser uma palavra dura. Sem carinho. Ou palavra muda, molhada de suor no esforço da terra não lavrada. Não ligo se ela vem suja, mal lavada. Procuro uma coisa qualquer que saia soada do nada. Eu imploro pelos verbos que tanto humilhei e reconsidero minha posição em relação aos adjetivos. Penso em quanta fadiga me dava o excesso de frases desalinhadas em meu ouvido. Hoje imploro uma fala escrita, não pode ser cantada. Preciso de uma palavra letra grifada grafia no papel. Uma palavra como um porto um mar um prado um campo minado um contorno carrossel cavalo pente quebrado véu mariscos muralhas manivelas navalhas. Eu preciso do escarcéu soletrado Preciso daquilo que havia negado E mesmo tendo medo de algumas palavras preciso da palavra medo como preciso da palavra morte que é uma palavra triste. Toda palavra deve ser anunciada e ouvida. Nunca mais o desprezo por coisas mal ditas. Toda palavra é bem dita e bem vinda. Viviane Mosé.
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Julho 2017
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