MOTIVO Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa. Não sou alegre nem sou triste: sou poeta. Irmão das coisas fugidias, não sinto gozo nem tormento. Atravesso noites e dias no vento. Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço - não sei, não sei. Não sei se fico ou passo. Sei que canto. E a canção é tudo. Tem sangue eterno a asa ritmada. E um dia sei que estarei mudo: - mais nada. Cecília Meireles.
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guerra tique nervoso à espera de alguém que venha beber água desabotoar as calças jogar bola atirar no macio arrancar os músculos acumular fôlego pra sufocar com o próprio peso o peso do outro: uma bigorna um piano um travesseiro. Ana Guadalupe.
Mylia morava no primeiro andar do número 77 da Rua Moltke. Sentada numa cadeira desconfortável pensava nas palavras fundamentais da sua vida. Dor, pensou, dor era uma palavra essencial. Havia sido operada uma vez, depois outra, quatro vezes operada. E agora aquilo. Aquele ruído no centro do corpo, no miolo. Estar doente era uma forma de exercitar a resistência à dor ou a apetência para se aproximar de um deus qualquer. Mylia murmurou: a igreja está fechada de noite. Quatro da manhã do dia 29 de Maio, e Mylia não consegue dormir. A dor constante vinda do estômago, ou talvez mais de baixo, de onde vem exactamente a dor larga, que não pertence a um ponto? Talvez da parte de baixo do estômago, do ventre. O certo é que eram quatro da manhã e ainda não descansara um minuto. Fechar os olhos quando se tem medo de morrer? Levantou-se. Mylia era uma mulher magra, mas forte. Não utilizava os dedos para ninharias. (Muitas vezes repetia a frase: não utilizar os dedos para ninharias.) Concentrava-se; sabia que tinha poucos anos de vida; a doença veio: ficamos juntas uns anos, depois ela permanece e eu parto. Pois bem, havia que concentrar a energia que existe nos dias ou que existe num corpo e se dirige aos dias, concentrá-la - à energia - como a um rolo de carne, estar pronta para agir. Dispensando ninharias. Os dedos devem tocar só no que é espesso, no que é fundamental; o urgente tem de coincidir com o essencial, com o que altera de alto a baixo. Como uma pancada forte no momento em que a recebemos: todas as coisas do dia mais insignificante se devem aproximar desse momento em que se recebe uma pancada forte. Mylia olhava-se ao espelho: estou viva e já dei um passo mau. Estar doente é ter dado um passo mau, um passo diabólico, murmurou Mylia. Uma doença que altera de alto a baixo. Gonçalo M. Tavares in Jerusalém (2005).
I’m Nobody! Who are you? Are you – Nobody – too? Then there’s a pair of us! Don’t tell! they’d advertise – you know! How dreary – to be – Somebody! How public – like a Frog – To tell one’s name – the livelong June – To an admiring Bog! Emily Dickinson.
3 poemas de Pedro CraveiroCOPACABANA DREAMS entre nós um continente e dois oceanos de distância então o amor é isto cada um por sua conta e o cheiro a poema velho TO DIE IN L.A. no princípio era o verbo breathe it in and breathe it out todos os distritos em alerta amarelo e os teus joelhos eram a minha casa esse era o tempo em que o teu cabelo fixava o ralo do chuveiro e eu reclamava a mãe não pode ver cabelos no ralo no princípio era o medo de amar-te por inteiro sem esquecer-te na metade todas as manhãs esperava-te à janela e repetia, como te quero mais cedo entendi que o medo por prisão era a certeza dos nossos flancos tu sabias como me convencer e trazias sempre um livro para dois quantos poemas te escrevi uma tarde, recordo-me agora, perguntaste se a minha poesia mudaria o mundo é claro que não no princípio era a poesia em cada casaco achava um isqueiro teu em cada café o teu sabor num maço de marlboro os dias mais ásperos. FUI A BRUGES ESQUECER UM AMOR – em resposta ao poema “fui a Lisboa esquecer um amor" – para o João Meireles tu não estás aqui e tenho beijado todas as garrafas num bar escondido de Bruges sem querer dou por mim a perder terreno na tua vida eu que sempre te esperei às 17 na janela desalumiada do metro entre olaias e chelas tu não estás aqui e é tão bom assim: despertar incerto partir a língua em dois como um hiato granjear o sol dalgum hemisfério reaver-me dos engenhos necessários e supor que tudo se resume, caro watson, a morte & amor tu não estás aqui em tanto sítio em tanto corpo assediado no dia em que Freddie morreu. se em muito te reconhecia, em pouco te relembro agora O autor:
Pedro Craveiro nasceu no Porto, em 1990. É mestre em Estudos Literários Culturais e Interartes pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Publicou um poema no Anuário da Poesia de 2015, lançado pela Assírio & Alvim e tem outros publicados em revistas eletrônicas. Sem Budismo Poema que é bom acaba zero a zero. Acaba com. Não como eu quero. Começa sem. Com, digamos, certo verso, veneno de letra, bolero. Ou menos. Tira daqui, bota dali, um lugar, não caminho. Prossegue de si. Seguro morreu de velho, e sozinho. abrindo um antigo caderno foi que eu descobri antigamente eu era eterno Paulo Leminski (1944-1989).
OS ILUDIDOS a esperança fracassa muitas vezes, a dor jamais, por isso alguns crêem que mais vale dor conhecida que dor por conhecer, crêem que a esperança é ilusão, são os iludidos da dor. Juan Gelman.
Não não narrarei a história não descreverei o cenário não contarei o tesouro de sensações não desfiarei causas nem nada que ofenda o acaso o deus dos encontros Paula Glenadel.
Se fosse viva, Ana Cristina Cesar estaria comemorando mais um ano de vida hoje. Poeta, ensaísta e tradutora (muitas vezes associada à Poesia Marginal), a autora de "A Teus Pés" – seu livro mais conhecido – é dona de um estilo inconfundível. O tom confessional de seus versos, por vezes lembrando conversas ao telefone ou até pedaços de diários (falsos ou não), aliado ao cuidado que tinha com os textos, são algumas marcas pessoais da mulher de “muitas camadas”. Essas características se fazem presente também na edição “Ana Cristina Cesar – poética” (Companhia das letras), lançada em 2013. Quantas camadas uma pessoa possui? E se essa pessoa usa óculos, quantas camadas a mais ela ganha? E se veste camisa rosa; por trás de cada fio ela ganha outras mais? Se tratando da poesia de Ana Cristina Cesar, as camadas são muitas. Não estamos falando de personalidades dispersas. Seus escritos são capazes de mostrar quantos podemos ser, revelando intimidades das mais cotidianas, que pertencem a muitos e ao mesmo tempo tão únicas. É como estar naquela festa de Natal em família e achar-se “bonita que é um desperdício”. As nuances da literatura de Ana C. foram reunidas na edição [necessária] Ana Cristina Cesar – poética, lançada pela Companhia das letras (2013, p. 503). Necessária, pois, em vida, seu único livro publicado por uma editora foi A teus pés (Brasiliense, 1982). A maior parte de sua produção esteve dispersa; guardada em pastas, da posse de amigos ou reproduzida nos formatos artesanais, marca da geração mimeógrafo. Este grupo, também chamado por Elio Gaspari de Geração 77 ou poetas marginais, teve como nomes principais Chacal, Cacaso, Francisco Alvim e “aquela loura donzela que se chama Ana Cristina Cesar”. Mesmo estando ligada a esses grupos, podemos dizer que seu impulso literário vinha de um contexto mais macro: o da contracultura, com características únicas, que fogem da ideia de escrita de improviso. Professora de literatura, tradutora de Sylvia Plath e Emily Dickinson e leitora de Walt Whitman, sua escrita vinha carregada de referências clássicas e um cuidado obsessivo com o texto. A poética nos leva a um encontro completo com Ana C., um encontro que dá vontade de voltar mais vezes, de saber mais sobre sua obra e também sobre a pessoa que aos 30 anos de idade, em 1981, se jogou da janela de seu apartamento e interrompeu sua contribuição, que se mostrava como uma das mais promissoras para a poesia. Promessa reforçada por conhecidos e amigos como Heloisa Buarque de Hollanda, Armando Freitas Filho e Caio Fenando Abreu. Na capa de edição de A teus pés, Caio a denominou como um dos “escritores mais originais, talentosos, envolventes e inteligentes surgidos ultimamente na literatura brasileira”. Os textos revelam ao mundo a intimidade tão assustadora das mulheres. Ana traduz, num deboche tão amável, os atos que “escorrem como líquidos lubrificando passagens ressentidas” (p.198). A antologia pode ser muito bem sua leitura de cabeceira; bíblia em que se abre uma passagem e, nesse caso, troca-se a moral pelo rubor, por encontrar ali uma total compreensão, como se aquele seu segredo estivesse em domínio público. Ana Cristina Cesar - poética está dividido em seções de temporalidade e temáticas: Cenas de abril (1979); Luvas de pelica (1980); A teus pés: prosa/poesia (1982); inéditos e dispersos: poesia/prosa (1985); antigos e soltos: poemas e prosas da pasta rosa – seleção; e visita à oficina. Contudo as divisões são apenas marcações. Misturam-se todos os gêneros de texto, desenhos, manuscritos, confissões e parte de seus diários ou cadernos terapêuticos, como os chamava, e no qual estão fragilidades, medos e nossos sentimentos mais comuns, porém mais escondidos. Ali é permitido dizer “não quero ir pra minha casa, onde me sinto independente demais (é como excesso). Volto para a casa de mamãe”. Sua literatura abate. Quando Sylvia Plath, de quem Ana era tradutora, dizia “a noite saio a caça de algo para amar”. A outra se faz transeunte moderna em mocidade independente. Pela primeira vez infringi a regra de ouro e voei pra cima sem medir as consequências. Por que recusamos ser proféticas? E que dialeto é esse para a pequena audiência de serão. Voei pra cima: é agora, coração, no carro em fogo pelos ares, se uma graça atravessando o estado de São Paulo, de madrugada, por você, e furiosa, nesta contramão. Aos nossos pés está Ana C. que não se roga, entrega-se, despida “querendo a glória, a outra cena à luz de spots”. Este ano sua obra será mais falada do que nunca. Ela será a autora homenageada da 14ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que ocorrerá de 29 de junho a 3 de julho. Gabriela Sobral.
que ela venha, a loucura, se vier por entre folhas e livros cinzas e manchas por entre bocas e falas palavras, florestas edifícios que queimam peitos desabrigados que ela venha, a loucura, se vier refúgio das mãos e da cabeça que me escorre em dias solitários horas acompanhadas a loucura, que ela venha, se vier nesta mesa, neste quarto, nesta casa Rafael Braga.
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Julho 2017
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