Quando aumenta a repressão, muitos desanimam. Mas a coragem dele aumenta. Organiza sua luta pelo salário, pelo pão e pela conquista do poder. Interroga a propriedade: De onde vens? Pergunta a cada idéia: Serves a quem? Ali onde todos calam, ele fala E onde reina a opressão e se acusa o destino, ele cita os nomes. À mesa onde ele se senta se senta a insatisfação. A comida sabe mal e a sala se torna estreita. Aonde ele vai há revolta e de onde o expulsam persiste a agitação. Bertold Brecht.
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Obscena Na linguagem dos fluidos e dos ais multicolores, meu corpo esfarelou-se no teto, rompendo-se em prazerosas dores Todas as noites eu rodopiava no ar, tocava os anjos. E as paredes dançavam extasiadas. Suzana da Costa Longo.
VISÃO Para Ruanda Toda foice devia ter um olho para ver o estrago que causa. Hoje, nossas ferramentas são feitas em fábricas. Machetes cegas como pedras chegam empilhadas em caminhões. Elas não veem os olhos suaves de uma criança. Toda foice devia ter um olho para ver o estrago que causa. Kwame Dawes.
Vigília sonora Aplicou-me um indutor Na veia Embora eu pedisse água Veia crê em soníferos? Insônia eletrônica A noite toda Uma insônia bípica "Ao menos não me assassinaram" Cintilei às cinco No êxtase lúcido da vigília Sebastião Uchoa Leite.
ATÉ QUE NOS SEPARE A MORTE E então, vamos perdendo alguns poemas por dia, Não tanto quanto os sonhos Não esquecidos porque nunca lembrados E agora Esvoaçaram as aves de formas erráticas, As letras que definitivamente Esclareceriam tudo, todos Os modos e todos os falantes E vozes e intermittences du cœur Que temos aqui enterradinhos Como uma linha de pescar Sim, afundada no açude No pálido plácido palpável Açude de então: À distância, a madrinha nem ousa Oferecer em matrimônio Aquele poema, Aquele mesmo que não foi, Cônjuge e náufrago Até que dele nos separe a morte. (México, Puerto Morelos, 28 XII 03) Horácio Costa.
DESVENDA Um poema deveria servir pra curar ressaca pra pagar o aluguel pra fechar ferida pra abrir a porta [em quando se perdem as chaves pra fechar as perdas [de quando se abrem as portas Um poema deveria servir pra serrar a grade da janela pra pagar a conta de luz pra parar o choro pra matar a fome pra parar a guerra pra calar a boca pra abrir as pernas mas. Não há nada mais inútil que uma coisa que serve menos que chaves, funcionários, cobertores automóveis, televisroes smart microondas romances russos e vibradores. Um poema não serve pra nada além de todas as outras coisas que não podem ser resolvidas porque não estão à venda. O preço do poema é a eterna falta de serventia para fins comerciais Michele Santos.
A CHUVA A tarde subitamente clareou Porque já cai a chuva minuciosa. Ou caiu. A chuva é coisa curiosa Que acontece no tempo que passou. Quem a ouve cair já recobrou O tempo em que a fortuna venturosa Revelou-lhe uma flor chamada rosa E a encarnada cor com que se corou. Que esta chuva que já cega a vidraça Em afastados arrabaldes faça Feliz a vide que há muito cresceu Num pátio que já não há. A chuvosa Tarde traz-me a voz, querida voz: a Do meu pai que volta e que não morreu. Jorge Luis Borges.
A vida é um milagre. Cada flor, Com sua forma, sua cor, seu aroma, Cada flor é um milagre. Cada pássaro, Com sua plumagem, seu vôo, seu canto, Cada pássaro é um milagre. O espaço, infinito, O espaço é um milagre. O tempo, infinito, O tempo é um milagre. A memória é um milagre. A consciência é um milagre. Tudo é milagre. Tudo, menos a morte. – Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres. Manuel Bandeira.
Não posso adiar o amor para outro século Não posso Ainda que o grito sufoque na garganta Ainda que o ódio estale e crepite e arda Sob montanhas cinzentas E montanhas cinzentas Não posso adiar este abraço Que é uma arma de dois gumes Amor e ódio Não posso adiar Ainda que a noite pese séculos sobre as costas E a aurora indecisa demore Não posso adiar para outro século a minha vida Nem o meu amor Nem o meu grito de libertação Não posso adiar o coração. António Ramos Rosa.
(ou poemas que viram músicas/músicas que são poemas)VIDA LÚCIDA Assim como ninguém explicou o início As ondas continuam a chegar na costa Tudo corre sempre em direção ao fim Os copos caem e as cidades se amontoam em nossas costas Amar o perdido deixa confundido este coração Ainda que os dias continuem a nascer Os ônibus andem, os outros durmam Meus pés tropeçam em suas pernas E eu calo a boca ao seu lado Nada pode o ouvido contra o sem sentido apelo do não E por que é que não estamos satisfeitos? Ou por que é que tentamos não estar simplesmente bem com o que é perfeito? E duvidamos de uma vida lúcida Depois de alguns cortes encontro vocês, meus amigos Que também são vidro, cortam e quebram Tudo por ter duvidado de que não seria assim tão trágico Mas bom E volto a sentir areia nos meus pés As coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão Duvidei e talvez ainda duvide De que tudo isso tenha como acabar bem E de tantas outras coisas que hoje são tão bobas E talvez um dia eu ria de tanto duvidar De que a vida pode ser grande, com vocês Em geral a gente tenta não deixar manchas Nem gritar muito alto só pra manter a ordem das coisas A dor é muda e a rotina caminha lenta Acumulando concreto em nossos corpos Num gigantesco escombro que chamamos de casa Eu não me esforço pra lembrar Daquele dia em que nos reconhecemos Do amor que eu sinto pelo amor que você sente Por todas as coisas que não sou eu E por todos os ossos Esses anos passaram rápido E eu não pude notar o momento da despedida, pela segunda vez Talvez eu tivesse dito alguma coisa Talvez eu tivesse pedido desculpas Por não ter sido perfeita Mesmo sabendo que nunca estamos satisfeitos E por que é que não estamos satisfeitos? Ou por que é que tentamos não estar simplesmente bem com o que é perfeito? E duvidamos de uma vida lúcida Mesmo que visse pouco, eu te vi naquele bar Num dia em que nada fazia sentido e nem tinha valor Eu vi em você o amor ébrio e talvez alguma pena, Você me levou pra casa e abraçamos uma despedida Como quem dá adeus a um dia único Depois disso encarei o chão entorpecida e com vergonha da verdade Vi a areia suja em nossos pés A noite segue seca E assim como ninguém explicou o início Longe, as ondas continuam a chegar na costa Tudo corre sempre em direção ao fim Os copos continuam a cair E amar o perdido ainda deixa confundido este coração Paola Rodrigues. |
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Julho 2017
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