Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e o representar) entretêm. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida - umas porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana. Não é esse o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso. Bernardo Soares.
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3 poemas de Samia Mounzersão três mo(vi)mentos: i. (tentar) dar ordem ao caos; ii. aceitar o caos como a ordem; iii. fazer do veneno vacina. às vezes, eu me sinto no topo de uma onda num lugar alto vendo coisas que só a minha visão pode enxergar entre o mar e o resto do mundo, no instante em que sou uma fronteira o ponto limite no traço de uma linha imaginária entre duas imensidões no topo de uma onda que está prestes a desmoronar, e eu tenho poder e medo depois, me vejo no coração da correnteza onde a água muda o rumo, ou sendo jogada à beira até quando a água quebrar e a água ficar despedaçada em cacos feito um papel picado que breve-breve se refaz líquido (e eu também consigo evaporar não sei como aprendi a passar por todos os estados das coisas) a vida, às vezes, atropela a gente e saio eu criança feliz me reerguendo do caixote, misto de vergonha e orgulho em busca de um olhar que tenha testemunhado a vitória sobreviver é um mérito único, é o ato heroico de cada um não sei se tudo retorna ao ponto de origem ou se a origem das coisas em tudo permanece e a gente desencontrado fica sentindo que não consegue voltar à origem que nos acompanha a lucidez das coisas é uma espécie de reencontro eu antecipo os acontecimentos eu me recupero de qualquer estrago eu não evito nada a vida estraçalha os sonhos e dos sonhos desfeitos moldamos sonhos novos, somos incansáveis não sei quem me ensinou a ter todos todos os tamanhos e gostar de ser pequenininha Marcel agia como se estivesse convicto de que tinha bons motivos para fazer o que quer que fosse. Suponho que Marcel tenha chegado a essa conclusão em algum momento distante, e de maneira subterrânea. O fato é que, depois dessa sentença, Marcel jamais revisitara esse pensamento. Porque Marcel refletira em um momento originário, Marcel não voltaria a refletir jamais. Marcel agia obstinado, acreditava que fazia escolhas importantes. Marcel tinha - seus - bons motivos para os atos ilegítimos. E quando apanhava da vida - sem glória - pensava, no seu íntimo - suponho eu -, que se a vida lhe batia assim tão corriqueira, tão grave e tão destinada, é que a vida só batia em quem era capaz de suportar. E suportava, sem carma nem cruz, sem prazer nem dor, o que julgava ser seu prêmio. Apanhar da vida, talvez fosse, para Marcel, sua própria glória, ou, ainda, a única espécie de troca que conhecia. Marcel era a imagem desfigurada de um homem, a personificação da iniquidade. A Marcel, nem choro nem vela. Nenhum lamento ou comiseração. Apenas a vida que batia sem arrebatar. A autora:
Samia Mounzer tem 29 anos e mora em Campos (RJ). É servidora pública, amante de causas perdidas, irrelevâncias, sonhos e correntezas. Publica seus poemas aqui. SE se por acaso a gente se cruzasse ia ser um caso sério você ia rir até amanhecer, eu ia ir até acontecer de dia um improviso, de noite uma farra a gente ia viver com garra eu ia tirar de ouvido todos os sentidos ia ser tão divertido tocar um solo em dueto ia ser um riso ia ser um gozo, ia ser todo dia a mesma folia até deixar de ser poesia e virar tédio e nem o meu melhor vestido era remédio daí, vá ficando por aí, eu vou ficando por aqui, evitando, desviando, sempre pensando, se por acaso a gente se cruzasse Alice Ruiz.
Abro a porta. Olho constantemente para o mapa mas já não me lembro para onde queria ir. Podia ficar aqui, enquanto a noite respira nas janelas embaciadas. Os móveis apagam-me os passos em ângulos cegos e, nessas sombras do incerto, deixo que o cansaço me tire a peruca da paciência assim como a noite nos tira a roupa antes de dormir. Isolado num cantinho da boca entreaberta, o teu sorriso vai contribuindo para o genocídio dos camarões que o vinho branco torna sempre menos sangrento. Poderia, de facto, ficar aqui enquanto desapareces, por fim, num sono sem importância. Vou esvaziando os copos e começo a compilar beijos, como quem junta, à pressa, moedas caídas pelo chão: somos todas putas, rapaz, com ou sem vodka. Golgona Anghel.
Ameaça Venha a mim Aproveite que a chuva ficou mais forte E confie mais na sua sorte Perceba que a luz ficou mais fraca Aqui entre nós Espera sem fim Venha a mim Antes que eu queira usar a faca Greta Benitez.
3 poemas de Fabiana MottaResíduos Um dia desses abri a janela e fiquei ali parada olhando. O tempo deixa um rastro que a gente só enxerga das janelas. Tem uma cor rosa esfumaçada e um cheiro de cachorro suado. Ele não fala nada, não suspira, não olha pra trás. Ele deixa essa bagunça rosa e fedida no coração da gente. Esse coração Este espaço de tempo De tudo que nunca seremos É música. Esse coração É perene É gota d'água É inatingível Intocável Impenetrável Nunca meu. Brief encounter Longe de mim Cor cinza, Língua estrangeira, Teu coração apertado Desandou o meu, O teu abraço perdido Alimentou meu suspiro Fiquei vazia. O espaço entre meus braços E tudo que não te participa É feito de tempo. Entre cafés E detalhes Te esqueço. Entre a cama desfeita da noite E a manhã aguada de sol e varais Te ponho pra fora. Guardo comigo Só o que me consola Teus olhos. A autora:
Fabiana é gaúcha, estudante de Antropologia na Universidade de Brasília e mora na capital há 16 anos. Desde 2007 faz parte do grupo de poetas da cidade chamado Nexo Grupal. Tem poemas e contos publicados em antologias, além de uma participação na exposição Cuide de Você, da artista francesa Sophie Calle (2009). como dizê-lo, como continuar, esfacelar a razão repetindo que não é somente um sonho, que se o vejo em sonhos como a qualquer de meus mortos, ele é outra coisa, está aí, dentro e fora, vivo se bem que o que vejo dele, o que ouço dele: a doença o aperta, fixa-o nesta última aparência que é minha recordação dele há trinta e um anos; assim está agora, assim é Por que é que você vive se adoeceu outra vez, se vai morrer outra vez? E quando morrer, Paco, o que vai acontecer entre nós dois? Vou saber que você morreu, vou sonhar, já que o sonho é a única zona onde posso vê-lo, que o enterramos de novo? E depois disso, vou deixar de sonhar, saberei que está morto de verdade? Porque já faz muitos anos, Paco, que você está vivo aí onde nos encontramos, mas com uma vida inútil e murcha, desta vez sua doença dura interminavelmente mais que a outra, passam-se semanas ou meses, passa Paris ou Quito ou Genebra e então vem Cláudio e me abraça, Cláudio tão jovem e garoto chorando quieto no meu ombro, avisando-me que você está mal, que suba para vê-lo, às vezes é um café mas quase sempre é preciso subir a escada estreita daquela casa que já puseram abaixo, de um táxi olhei há um ano aquele quarteirão de Rivadavia na altura de Once e soube que a casa já não estava lá ou que a haviam reformado, que faltam a porta e a escada estreita que levava ao primeiro andar, aos quartos de pé-direito alto e de gessos amarelos, passam-se semanas ou meses e de novo sei que tenho de ir vê-lo, ou simplesmente o encontro em qualquer lugar ou sei que está em qualquer lugar embora não o veja, e nada acaba, nada começa nem acaba enquanto durmo ou depois no escritório ou aqui escrevendo, você vivo para quê, você vivo por quê, Paco, aí, mas onde, meu velho, onde e até quando. Julio Cortázar, "Aí, mas onde, como?", in Octaedro.
esta vez o negócio acabou comigo. me sinto como as tropas alemãs açoitadas pela neve e pelos comunistas caminhando curvadas as botas gastas forradas com papel jornal. minha condição é tão terrível quanto. talvez pior. a vitória estava tão perto a vitória estava logo ali. enquanto ela estava ali diante do meu espelho mais jovem e bela que qualquer outra mulher que eu já conhecera penteando metros e mais metros de cabelo ruivo enquanto eu a observava. e quando ela veio para a cama estava mais bela do que nunca e o amor foi muito muito bom. onze meses. agora ela se foi como todas se vão. desta vez o negócio acabou comigo. é um longo caminho de volta mas de volta pra onde? o cara que vai na minha frente acaba de cair. passo por cima dele. será que ela também o acertou? Charles Bukowski.
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Julho 2017
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