ANTIMUNDO Para o João Diogo plágio manhoso do big-bang a matéria do poema expande, arrefece tão estranhamente se demora e permanece semelhando o Universo o poema é a imagem-espelho de um corpo sem reflexo: a poesia oco assimétrico, residual desse princípio colocada em lugar dubitativo, separada quase sempre do buraco negro a que chamam literatura poder-se-á supor que poucos são os poetas capazes de acelerar partículas de modo a ver-se não só o que a luz já percorreu mas a região mais central do nada, o pátio furioso da potência e neste lugar de substâncias, de objectos as palavras são figuras do imundo, coisas que sobraram do estampido inaugural desse ‘dia inicial inteiro e limpo’ que culminou no lugar a menos deste texto breve logaritmo sem aplicação ou saída resta ao poeta o embuste de afirmar o que propende para o infindo espiar o acesso que cada coisa consente pela fissura do milagre e dá pelo nome de imprevisto, ou acidente a criança na rua abrindo o caixote do lixo onde alguém sem saber depositou o assombro de um balão de hélio branco ainda cheio que se soltou e subiu à laia de lua ao fim da tarde ao pé de casa a criança pasmou, entristeceu depois mais tarde lembrou-se: ‘tens de escrever um poema sobre o balão que voou do lixo e não agarrámos’ um poema é a coisa mais triste que há e escrevi Miguel-Manso.
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EM SILÊNCIO DESCOBRI ESSA CIDADE NO MAPA Em silêncio descobri essa cidade no mapa a toda a velocidade: gota sombria. Descobri as poeiras que batiam como peixes no sangue. A toda a velocidade, em silêncio, no mapa - como se descobre uma letra de outra cor no meio das folhas, estremecendo nos ulmos, em silêncio. Gota sombria num girassol - essa letra, essa cidade em silêncio, batendo como sangue. Era a minha cidade ao norte do mapa, numa velocidade chamada mundo sombrio. Seus peixes estremeciam como letras no alto das folhas, poeiras de outra cor: girassol que se descobre como uma gota no mundo. Descobri essa cidade, aplainando tábuas lentas como rosas vigiadas pelas letras dos espinhos. Era em silêncio como uma gota de seiva lenta numa tábua aplainada. Descobri que tinha asas como uma pêra que desce. E a essa velocidade voava para mim aquela cidade do mapa. Eu batia como os peixes batendo dentro do sangue - peixes em silêncio, cheios de folhas. Eu escrevia, aplainando na tábua todo o meu silêncio. E a seiva sombria vinha escorrendo do mapa desse girassol, no mapa do mundo. Na sombra do sangue, estremecendo como as letras nas folhas de outra cor. Cidade que aperto, batendo as asas - ela - no ar do mapa. E que aperto contra quanto, estremecendo em mim com [ folhas, escrevo no mundo. Que aperto com o amor sombrio contra mim: peixes de grande velocidade, letra monumental descoberta entre poeiras. E que eu amo lentamente até ao fim da tábua por onde escorre em silêncio aplainado noutra cor: como uma pêra voando, um girassol do mundo. Herberto Helder.
RACCONTO Chegada na festa de olhos vendados e ninguém se apresenta. Mofamos no canto calados mas o nariz desperta (está no ar o perfume do perigo) muita batida conversa de atropelo joelho cotovelo – esse ângulo, amor, é impossível – poucos reparam na moça porque passa uma salada, bandeja de palavras raras com citação clássica em forma de cereja. Circula a taça, o narguilé, risada fraca afrouxa o cinto, o colóquio vira circuito de peitinhos rijos mas quando se repara já é tarde: o penetra mordisca o damasco, cospe o caroço identifica-se. Sou um artista, vou comê-la e Afrodite quase distraída: por que não? Eu também sou filha de Zeus. Eudoro Augusto.
REVOLUÇÃO Antes da revolução eu era professor Com ela veio a demissão da Universidade Passei a cobrar posições, de mim e dos outros (meus pais eram marxistas) Melhorei nisso - hoje já não me maltrato nem a ninguém Francisco Alvim.
Suma Teológica Não vim de longe, meu amor, nem sossobraram navios no alto mar, quando nasci. Nada mudou. Continuaram as guerras; continuou a subir o preço do pão; continuaram os poetas, uma vez por outra, a perguntar por ti. É certo que, então, imensa gente envelheceu instantânea e misteriosamente. Mas até isso, meu amor, se não sabe ainda se foi por minha causa, se por causa de outros que terão nascido ao mesmo tempo que eu. Jorge de Sena.
Espiral do tempo Apenas um papel de seda nos separa: o desenho da sua boca minha espinha estúpida. Na verdade são mais de 700 quilômetros mas o caderno é meu. Carla Andrade.
Ismália XXXIII Quando Ismália enlouqueceu, Pôs-se na torre a sonhar… Viu uma lua no céu, Viu outra lua no mar. No sonho em que se perdeu, Banhou-se toda em luar… Queria subir ao céu, Queria descer ao mar… E, no desvario seu, Na torre pôs-se a cantar… Estava perto do céu, Estava longe do mar… E como um anjo pendeu As asas para voar… Queria a lua do céu, Queria a lua do mar… As asas que Deus lhe deu Ruflaram de par em par… Sua alma subiu ao céu, Seu corpo desceu ao mar… Alphonsus de Guimaraens.
OBÁ KOSSÔ Xangô, Obá Kossô, cobre a cabeça com sua coroa de cobre e chega, portando a pedra do raio: tudo brilhando nele, tudo mudado em segredo, todas as loas para ele — elefante que anda com porte de rei, cavalo que manda e desmanda como um rei, pantera preta, senhor rei de Agasu —, aganju que bloqueia o rio e queima a chuva com o raio. Ricardo Aleixo.
sábado de aleluia Escuta, Judas. Antes que você parta pro teu baile. A morte nos absorve inteiramente. Tudo é aconchego árido. Cheiro eterno de Proderm. Mesa posta, e as garras da vontade. A gana de procurar um por um e pronunciar o escândalo. Falar sem ser ouvida. Desfraldar pendengas: te desejo. Indiferença fanática ao ainda não. Ana Cristina César.
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