AMBICIOSA Para aqueles fantasmas que passaram, Vagabundos a quem jurei amar, Nunca os meus braços lânguidos traçaram O vôo dum gesto para os alcançar... Se as minhas mãos em garra se cravaram Sobre um amor em sangue a palpitar... — Quantas panteras bárbaras mataram Só pelo raro gosto de matar! Minha alma é como a pedra funerária Erguida na montanha solitária Interrogando a vibração dos céus! O amor dum homem? — Terra tão pisada! Gota de chuva ao vento baloiçada... Um homem? — Quando eu sonho o amor dum deus!... Florbela Espanca.
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DOIS CORPOS Dois corpos frente a frente são às vezes duas ondas e a noite um oceano Dois corpos frente a frente são às vezes duas pedras e a noite um deserto Dois corpos frente a frente são às vezes raízes na noite enlaçadas Dois corpos frente a frente são às vezes navalhas e a noite um relâmpago Dois corpos frente a frente são dois astros que caem num céu vazio Octavio Paz.
Um poema de Fabiane GuimarãesQueria escrever um poema sobre as vidas que perdi dentro deste carro último modelo Num engarrafamento que já dura três dias Um poema sobre as minhas péssimas escolhas E todos os vazios que vieram delas Que sou bicho teimoso Mas não é todo dia Tem dia que eu me sinto bem Às vezes me bate vontade de voltar para um lugar Que talvez nem fosse assim tão bom Só de menos solitário me chega saudade Eu queria deixar de ser tola Meio orgulho, meio trouxa Também queria ter tido a opção de te amar Quando você precisasse Do jeito que você, do seu jeito torto Ainda merece. Vai ver é por isso que não sei escrever poemas: Eu que aprendi a escrever de tudo Até dos acidentes Os corpos amontoados no asfalto Ultimamente só vejo desgaste Rodapés trincados Flores atropeladas Café em copo de plástico Quem sabe porque, de todos esses poemas que eu não escrevi Nunca escreverei Acabei desse jeito: O coração meio oco Ruminando todas essas tristezas Que de tão mudas Comuns, traiçoeiras Jamais poderão encontrar conforto Mas não é todo dia. A autora:
Fabiane Guimarães é escritora e jornalista radicada em Brasília. Autora do folhetim Pequenas Esposas, publicado na Revista AzMina. Site oficial. QUASE Um pouco mais de sol - eu era brasa, Um pouco mais de azul - eu era além. Para atingir, faltou-me um golpe de asa... Se ao menos eu permanecesse aquém... Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído Num grande mar enganador de espuma; E o grande sonho despertado em bruma, O grande sonho - ó dor! - quase vivido... Quase o amor, quase o triunfo e a chama, Quase o princípio e o fim - quase a expansão... Mas na minh'alma tudo se derrama... Entanto nada foi só ilusão! De tudo houve um começo ... e tudo errou... — Ai a dor de ser — quase, dor sem fim... Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim, Asa que se elançou mas não voou... Momentos de alma que,desbaratei... Templos aonde nunca pus um altar... Rios que perdi sem os levar ao mar... Ânsias que foram mas que não fixei... Se me vagueio, encontro só indícios... Ogivas para o sol — vejo-as cerradas; E mãos de herói, sem fé, acobardadas, Puseram grades sobre os precipícios... Num ímpeto difuso de quebranto, Tudo encetei e nada possuí... Hoje, de mim, só resta o desencanto Das coisas que beijei mas não vivi... Um pouco mais de sol — e fora brasa, Um pouco mais de azul — e fora além. Para atingir faltou-me um golpe de asa... Se ao menos eu permanecesse aquém... Mário de Sá-Carneiro.
NAS CAROLINAS Os lilases murcham nas Carolinas. Já as borboletas adejam sobre os camarotes. Já os recém-nascidos interpretam o amor Nas vozes das mães. Mãe intemporal, Como é que teus galantinos mamilos De uma vez verteram mel? O pinheiro adoça o meu corpo A íris branca embeleza-me. Wallace Stevens.
Boletim do mundo mágico Meus pés sonham suspensos no Abismo minhas cicatrizes se rasgam na pança cristalina eu não tenho senão dois olhos vidrados e sou um órfão havia um fluxo de flores doentes nos subúrbios eu queria plantar um taco de snooker numa estrela fixa na porta do bar eu estou confuso como sempre mas as galerias do meu crânio não odeiam mais a batucada dos ossos colégios e carros fúnebres estão desertos pelas calçadas crescem longos delírios punhados de esqueletos são atirados no lixo eu penso nos escorpiões de ouro e estou contente os luminosos cantam nos telhados eu posso abrir os olhos para a lua aproveitar o medo das nuvens mas o céu roxo é uma visão suprema minha face empalidece com o álcool eu sou uma solidão nua amarrada a um poste fios telefônicos cruzam-se no meu esôfago nos pavimentos isolados meus amigos constroem [um manequim fugitivo meus olhos cegam minha mente racha-se de encontro a uma calota minha alma desconjuntada passa rodando Roberto Piva.
QUANDO ME ABANDONEI EM TI, eras pensamento, algo murmura entre nós dois: do mundo a primeira das últimas asas, em mim cresce a pele sobre tempestuosa boca, tu não chegas até ti. Paul Celan.
To John Dillinger and hope he is still alive. Thanksgiving Day November 28, 1986 Thanks for the wild turkey and the passenger pigeons, destined to be shit out through wholesome American guts. Thanks for a continent to despoil and poison. Thanks for Indians to provide a modicum of challenge and danger. Thanks for vast herds of bison to kill and skin leaving the carcasses to rot. Thanks for bounties on wolves and coyotes. Thanks for the American dream, To vulgarize and to falsify until the bare lies shine through. Thanks for the KKK. For nigger-killin' lawmen, feelin' their notches. For decent church-goin' women, with their mean, pinched, bitter, evil faces. Thanks for "Kill a Queer for Christ" stickers. Thanks for laboratory AIDS. Thanks for Prohibition and the war against drugs. Thanks for a country where nobody's allowed to mind the own business. Thanks for a nation of finks. Yes, thanks for all the memories-- all right let's see your arms! You always were a headache and you always were a bore. Thanks for the last and greatest betrayal of the last and greatest of human dreams. William S. Burroughs
APOCALIPSES 1 Com a aurora a ressumar, este sinal: em minha janela, uma árvore nua. 2 Um grito esquartejou a aurora. Ao homem que retomara o espelho, pareceu-lhe que uma nova noite o invadia. Suplicava que lhe fosse poupada essa insustentável evidência. Francis Ponge.
A narrativa como existência |
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