Embriagai-vos É necessário estar sempre bêbado. Tudo se reduz a isso; eis o único problema. Para não sentirdes o fardo horrível do Tempo, que vos abate e vos faz pender para a terra, é preciso que vos embriagueis sem cessar. Mas – de quê ? De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor. Contanto que vos embriagueis. E, se algumas vezes, sobre os degraus de um palácio, sobre a verde relva de um fosso, na desolada solidão do vosso quarto, despertardes, com a embriaguez já atenuada ou desaparecida, perguntai ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai-lhes que horas são; e o vento, e a vaga, e a estrela, e o pássaro, e o relógio, hão de vos responder: - É a hora de embriagar-se! Para não serdes os martirizados escravos do Tempo, embriagai-vos; embriagai-vos sem tréguas! De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor. Charles Baudelaire (Tradução de Aurélio Buarque de Holanda).
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Agony ANGÚSTIA. O sujeito apaixonado, do sabor de uma ou outra contingência, se deixa levar pelo medo de um perigo, de uma mágoa, de um abandono, de uma reviravolta - sentimento que ele exprime sob o nome de angústia. 1. Esta noite voltei sozinho ao hotel; o outro decidiu retornar mais tarde. As angústias já estão lá, como o veneno preparado (o ciúme, o abandono, a inquietude); elas esperam apenas que passe um pouco de tempo para poder decentemente se declarar. Pego um livro e um sonífero, "calmamente". O silêncio deste grande hotel é sonoro, indiferente, idiota (ronron longíquo das banheiras se esvaziando); os móveis, as lâmpadas são estúpidas, nada de amigável onde se aquecer ("Estou com frio, voltemos a Paris). A angústia cresce, observo sua progressão, como Sócrates falando (eu lendo) sentia aumentar o frio da cicuta; eu a escuto se nomear, sobressair, como uma figura inexorável, do fundo das coisas que estão lá. (E se, para que qualquer coisa aconteça, eu fizesse uma promessa?) 2. O psicótico vive sob o temor do aniquilamento (do qual as diversas psicoses seriam apenas defesas). Mas "o temor clínico do aniquilamento é o temor de um aniquilamento que já foi experimentado (primitive agony) [...] e há momentos em que um paciente precisa que lhe digam que o aniquilamento cujo temor mina sua vida já ocorreu". O mesmo, parece, se passa com a angústia de amor: ela é o temor de um luto que já ocorreu, desde a origem do amor, desde o momento em que fiquei encantado. Seria preciso que alguém pudesse me dizer: "Não fique mais angustiado, você já o(a) perdeu". Roland Barthes, in Fragmentos de um discurso amoroso.
Adeus, Meus Sonhos! Adeus, meus sonhos, eu pranteio e morro! Não levo da existência uma saudade! E tanta vida que meu peito enchia Morreu na minha triste mocidade! Misérrimo! Votei meus pobres dias À sina doida de um amor sem fruto, E minh'alma na treva agora dorme Como um olhar que a morte envolve em luto. Que me resta, meu Deus? Morra comigo A estrela de meus cândidos amores, Já não vejo no meu peito morto Um punhado sequer de murchas flores! Álvares de Azevedo.
Thessa Guimarães cada vez que seu pau entrou nela
você me deu uma facada é um corpo que mal pode ser velado deixe-o que a terra há de cuidar SOBRE FLANCOS E BARCOS Havia ainda outro jardim o da minha vida exíguo é certo mas o do meu olhar são talvez dois pássaros que se amam um sobre o outro ou dois cães não sei é sempre a mesma inquietação este delírio branco ou o rumor da chuva sobre flancos e barcos o Inverno vai chegar na palha ainda quente a mão uma doçura de abelha muito jovem era o sopro distante das manhãs sobre o mar e eu disse sentindo os seus passos nos pátios do coração é o silêncio é por fim o silêncio vai desabar. Eugénio de Andrade.
Ler atravésGabriela Sobral O ato de ler cria uma determinada cena: de um momento íntimo, solitário, em um ambiente que elegemos – sentados em um café, em pé no ônibus, deitados em nossas camas e redes; há uma pausa para uma anotação ou para pensar sobre o texto que, por vezes, nos causa espanto. Agora, quer espanto? Vá a um clube de leitura e veja a infinitude de espantos, assim mesmo, com todos os “ésses” possíveis, que ele vai lhe oferecer. Minha experiência com um desses clubes veio da mediação que faço no grupo Leia Mulheres Belém. Em linhas gerais, a proposta é ler autoras, com o intuito de questionarmos o espaço das mulheres não só no mercado, mas também em nossas próprias estantes. Começamos os encontros em maio deste ano. Percebi a construção de um novo olhar, a partir do compartilhamento, quando tivemos a segunda edição e lemos “A redoma de vidro” da Sylvia Plath. Algumas nuances do livro passaram por mim despercebidas até que vieram à tona no momento em que o enredo do livro era costurado com as histórias de vidas dos leitores e leitoras, trazendo uma potência à literatura não só como uma antecipação de experiências, como já me parecia, mas também da possibilidade de vivência de experiências reais que se dá pelo olhar do outro. Este real se constrói não pela vivência dos fatos em si, mas pelo compartilhamento que está no âmbito da fala e causa empatia, traz atenções antes não percebidas. Não deixa de ser, no sentido psicanalítico, uma “cura” pela palavra. É quando nomeamos o que por nos deixou de ser dito. Nesse sentido, a leitura compartilhada no Leia Mulheres vem sendo capaz de criar novos significantes e de termos contato com um real para além de experiências próprias. Com isso o texto ganha outras potencialidades e interpretações. Estamos diante desse real que por vezes não sabíamos nomear, que estava por aí, mas que nos aparece para interferir na nossa própria construção de realidade. O caso do livro da Plath foi emblemático para mim e para a Luiza Chedieck (a outra mediadora do clube junto comigo), pois um olhar muito ferrenho deixou escapar pensamentos de que a vida, aparentemente burguesa da personagem não nos tinha muito a dizer. Um equívoco; pois o julgamento prévio (pré-conceito?) esvaziou a leitura e a narrativa enquanto experiência. No momento que fomos para a leitura conjunta, tive a oportunidade de reorganizar minha própria narrativa do texto, que trouxe temas, como a saúde mental, internação compulsória e a admissão da nossa existência enquanto indivíduos, fazendo parte de um coletivo, o que me tirou da minha bolha, ou melhor, quebrou a minha redoma de vidro. Em outra situação, lemos “Quarto de Despejo”, da Carolina Maria de Jesus (escritora negra e que morava em uma favela paulistana). O livro é um diário biográfico de Carolina, no qual ela relata seu ambiente social, as relações pessoais na favela e, ainda, sua vivência profissional enquanto catadora de papel. Nesse encontro, uma das participantes disse que a partir da leitura em que se narra a vida de mulheres da favela, ela passou a aceitar a mãe, que mora em um bairro pobre de Belém, (no qual a participante não reside) , pois sempre morou com as tias, que têm uma condição de vida financeira estável. Com isso, dizia ter dificuldades de entender o lugar que a mãe ocupava. Por que estava ali? Por que vivia uma situação diferenciada das tias? Por que não tinha feito outras escolhas? Isso me acompanha sempre que penso na leitura como algo que atravessa a consciência, é imprevisível até onde chega a capacidade de nos trazer novos significantes. Como li em um editorial do caderno Suplemento Pernambuco, escrito por Igor Gomes “a literatura serve, antes de tudo, como via de acesso ao real”. O que é o Leia Mulheres
A iniciativa nasceu inspirada na camapanha #readwomen2014 (#leiamulheres2014) da escritora Joanna Walsh que consistia em estimular a leitura de mulheres. Um grupo em São Paulo começou o clube presencial, em que sempre se lê uma autora, e, atualmente ocorre em quase 40 cidades, mensalmente. A mediação é sempre feita por mulheres, mas é aberto a todos, todas e todxs. Acesse o site aqui. Rios de rumor: meu peito te dizendo adeus. Aldeia é o que sou. Aldeã de conceitos Porque me fiz tanto de ressentimentos Que o melhor é partir. E te mandar escritos. Rios de rumor no peito: que te viram subir A colina de alfafas, sem éguas e sem cabras Mas com a mulher, aquela, Que sempre diante dela me soube tão pequena. Sabenças? Esqueci-as. Livros? Perdi-os. Perdi-me tanto em ti Que quando estou contigo não sou vista E quando estás comigo vêem aquela. Hilda Hilst.
Thessa Guimarães duas moedas
essas moedas sobre meus olhos abertos o aço sujo contra a retina não dói, não fecho quero ver todo leito da morte quero ver o céu das cavernas e o brilho das criaturas que me acompanharem não pisco e as equilibro na tangente ocular em que pese terem sido depositadas sobre meus olhos nublados em que pese abrirem as portas do fim minha retina sabe que seu aço funciona no escambo com os vivos não morri de todo, parece pressinto meus olhos frios e há neles dutos de sangue Um poema de Pedro Martins Ao Guilherme Deitado sobre mim está o corpo morto do pai e à vez algoz. Ao ver evaporada sua autoridade, arrancou-nos a vida. Já eu, em busca da surreal liberdade, vivi lutando a minha. As nossas diferenças não fazem mais sentido. Só vos resta o atroz. O autor: Pedro Martins, 31 anos, doutor em Filologia Grega pela Universidade de Göttingen. Interrogação Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar, Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo; E apesar disso, crê! nunca pensei num lar Onde fosses feliz, e eu feliz contigo. Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito. E nunca te escrevi nenhuns versos românticos. Nem depois de acordar te procurei no leito Como a esposa sensual do Cântico dos Cânticos. Se é amar-te não sei. Não sei se te idealizo A tua cor sadia, o teu sorriso terno... Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso Que me penetra bem, como este sol de inverno. Passo contigo a tarde e sempre sem receio Da luz crepuscular, que enerva, que provoca. Eu não demoro o olhar na curva do teu seio Nem me lembrei jamais de te beijar na boca. Eu não sei se é amor. Será talvez começo... Eu não sei que mudança a minha alma pressente... Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço, Que adoecia talvez de te saber doente. Camilo Pessanha.
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Julho 2017
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