Malú Nunes Você já acordou com a sensação de que não é o mesmo de quando foi dormir? O sol que parecia escaldar seu juízo deixando a cabeça confusa de repente já te agrada e ilumina a trilha do caminho que se abriu. Tão gostoso sentir esse calor! A brisa que de hora em hora acarinha os cabelos e deixa os fios serem engolidos pelo riso frouxo enquanto os pés lentamente se movem na direção escolhida, arriscando uma dança desengonçada ao som de Cícero cantando "camomila".
É como ter embarcado numa viagem sem roteiro, só com destino, sem ninguém, sem bagagem. Acordei vazia, vazia dum jeito bom, sabe? É como se tivesse exalado na respiração tranquila do sono profundo os problemas e anseios, as crises e os medos, me preparado para encher a vida de bem, de sorrisos, de esperança. Despertei de braços dados com a reinvenção de mim mesma. Abri os olhos empoderada, sem obrigação com nada que não seja do meu interesse, fechando os ouvidos e tocando o foda-se para o que suga minhas energias e me faz temer ser o que guardo só pra mim. Eu que nunca me dava ao máximo e me contentava com pouco, que não arriscava, que tinha medo da solidão, mas só me permitia ao não; eu que a cada dia entregava um ponto por vez chamando em silêncio e sem fé por uma salvação divina, abri os olhos certo dia e me vi leve (quase flutuando sob o chão frio), ao constatar que a claridade da manhã havia levado o desespero de quem não sabe o que quer. Mesmo querendo tanto e cada vez mais. Olha, sei bem como é dar tudo sempre tão errado. Senti por várias vezes a desgraça respirando meu perfume quando de noite nos braços dela me entregava. É foda. Eu descobri que os clichês trazem verdades óbvias que só são descobertas rasgando o pulso, quebrando a cara: não tem receita, não adianta procurar, não adianta tentar fazer analogias profundas e forçadas da própria vida, nem culpar ou mandar o mundo inteiro pro inferno. O nosso inferno somos nós mesmos e tá no sangue escorrendo pelas mãos a cada golpe cruel que nos damos. Murro em ponta de faca, pancada latejando no próprio peito e não no de terceiros. Encontrei a solução nos meus olhos quando me dei mais uma chance ao percebê-los ausentes de minh’alma, vagos e vagabundos. As respostas vieram na ponta da língua e pude sentir a vivacidade do sal das perguntas, apertei os lábios com medo de deixar o sabor escapar e percebi que não seria necessário pois já havia sido resgatada por um sentimento sem signo, mas deveras significante. Olhar pra si. Nu, cru, frágil. Ouvir os acordes do mundo, a melodia da natureza, o seu próprio tom de voz, calar. Não desesperar nem esperar demais. Uma hora cê acorda e o sol já não vai mais cegar, o espelho revelará o prazer de estar vazio, revigorado e de pé, com a alma repleta de calma e boa vontade, a sua mão esquerda estará entrelaçada com a direita, será seu corpo reafirmando os laços com ele mesmo. Seus pés mal tocam o chão ao sair da cama, mas já sabem o caminho. Você sairá do quarto e só pelo tom de voz no seu “bom dia” perceberão que quem despertou não foi o mesmo que outrora ali adormeceu. Você abrirá a porta do quarto e a vida te abrirá um sorriso. Ao passo que os lábios, sem que você perceba, rasgar-se-ão mostrando os dentes agradecendo a cordialidade. Ao sair porta a fora sentirá que o passado partiu, tornando-se mais-que-perfeito.
0 Comentários
Fábula de um Arquiteto A arquitetura como construir portas, de abrir; ou como construir o aberto; construir, não como ilhar e prender, nem construir como fechar secretos; construir portas abertas, em portas; casas exclusivamente portas e tecto. O arquiteto: o que abre para o homem (tudo se sanearia desde casas abertas) portas por-onde, jamais portas-contra; por onde, livres: ar luz razão certa. Até que, tantos livres o amedrontando, renegou dar a viver no claro e aberto. Onde vãos de abrir, ele foi amurando opacos de fechar; onde vidro, concreto; até fechar o homem: na capela útero, com confortos de matriz, outra vez feto. João Cabral de Melo Neto.
Carminha Gouthier (12/04/1903 - 05/06/1983)Por Rafael Bessa Quando tive o primeiro contato com um poema de Carminha Gouthier (Maria do Carmo Sousa Coelho), tive certeza que estava lendo um escrito de alguma santa mística católica, como Santa Teresa de Ávila. Logo, fiquei surpreso ao descobrir que eram de uma intrigante e pouco conhecida poetisa mineira. Carminha Gouthier, nasceu em Dores do Indaiá em 1903 e é considerada uma das maiores vozes femininas da poesia mística do Brasil. Além da profunda espiritualidade, há nos poemas uma aura idílica e um recorrente estranhamento do absoluto e das ausências. Devido ao seu modo de vida modesto, teve apenas dois livros publicados, por insistência de amigos: A Luz e O Trigo, publicado 1961 e Espantalho de Deus, de 1967. Após sua morte foi publicada uma reunião dos seus poemas, chamado MYSTICA POESIA. Vieste para mim, que ando devagar no trilho aberto pelo Teu Lenho. Cerro os olhos à violência da Luz, fecho os ouvidos, que a Verdade é forte demais para a indigência dos sentidos. Sou capaz de dormir indiferente ao Suor de Sangue que escorre da traição, tingindo as raízes do mundo, ungindo os pés da Esposa para a travessia dos séculos. E talvez negue minha origem, se os servos indiscretos reconhecerem Teu sotaque na minha voz. Vieste para mim, que tenho a lança na altura do Teu Coração. Com o Óleo da Alegria
Se não queres que descanse nos Teus ombros minha fronte atormentada... E não me convidas para as colheitas de trigo, onde espigas vibram à música de Tuas Palavras... Nem me permites brincar com algas e conchas na areia da praia, onde os Teus consertam redes, no oficio de pescar... Se tropeço nas raízes da Cruz, ao colher as flores que amanhecem nos Teus rastros. E tenho de ficar sozinha, esquecida, até que venhas... Unge meus olhos, para que Te reconheçam sob o véu de todas as ausências. E meus joelhos, para que possa equilibrar-me nesse fio de luz estendido sobre os abismos. Malú Nunes A gente segura as batidas do coração acreditando veemente que a alma não estremece. A gente tenta estancar o sangue ferida aberta como se ele não escorresse por dentro queimando veias saltadas, pulsando os efeitos da repulsa por si mesmo, tentando encobrir o pecado, fingindo ser santo quando se é pagão. Aceitar as piores partes do ser é, mesmo sangrando, permanecer sorrindo. Talvez isso seja esperança ou talvez haja muito medo por trás dos dentes. Talvez seja um riso de vergonha como quem se desculpa pelos próprios defeitos, pelas falhas.
É difícil não se demonizar desejando um porre de água benta na tentativa inútil de purificação, após perceber o vazio dentro dos olhos inchados no rosto opaco. Dentro do espelho pregado na parede imunda do banheiro do bar. Numa mão o copo, dentro a solução: engolindo vorazmente para empurrar a angústia e expulsá-la como vômito. Cabeça frágil, corpo aberto, peito dilacerado, pensamento na morte. Encontro meus olhos novamente no reflexo e me sinto errada, mortal, indubitavelmente humana; tenho então a certeza de que envelheci. Respiro. O quê? Conspiro. Contra quem? Refém da própria vida, réu e juiz do mesmo crime. Sou tão infinita que ocupo todos os espaços, sou grande, feita de vontade, impulso, ansiedade e frustração. Gargalho de minhas mazelas, o som do meu riso é a melodia do desespero; a orquestra soa estridente, é a resposta sem explicação dos meus nervos já adoentados de tanto penar. A gente vai vivendo e percebe que não é preciso ter resposta para tudo, certas coisas simplesmente são ou não. A euforia e prontidão da língua juvenil impiedosa e inquieta vão dando lugar à preguiça e complacência senil, mas ainda implodo na pele. As lágrimas iluminam minha face como fogos de artifício inspirando promessas em noite de réveillon. Anuncio minha dor e acendo. Chorar é meu refúgio quando a alma rasga a carne. Soluço para o mundo minhas escolhas erradas, cerro os dentes com toda a força num quase sorriso em meio ao pranto e pago em raiva aos cobradores da vida. Apago. Ao amanhecer é 1º de janeiro outra vez, berço de nova desordem tal qual o caos é berço de minha arte. Me rasgo no papel branco e o decoro com lamento, despejo ali minha confissão: culpada pela morte santa de minh’alma seguida de ressurreição. Vítima do dualismo Ser miserável dentre os miseráveis — Carrego em minhas células sombrias Antagonismos irreconciliáveis E as mais opostas idiosincrasias! Muito mais cedo do que o imagináveis Eis-vos, minha alma, enfim, dada às bravias Cóleras dos dualismos implacáveis E à gula negra das antinomias! Psiquê biforme, o Céu e o Inferno absorvo… Criação a um tempo escura e cor-de-rosa, Feita dos mais variáveis elementos, Ceva-se em minha carne, como um corvo, A simultaneidade ultramonstruosa De todos os contrastes famulentos! Augusto dos Anjos.
MEMÓRIA Amar o perdido deixa confundido este coração. Nada pode o olvido contra o sem sentido apelo do Não. As coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão. Mas as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão. Carlos Drummond de Andrade.
|
Archives
Julho 2017
Categories
Todos
|
ESCORRER