[Mas agora estou no intervalo em que] Mas agora estou no intervalo em que toda a sombra é fria e todo o sangue é pobre. Escrevo para não viver sem espaço, para que o corpo não morra na sombra fria. Sou a pobreza ilimitada de uma página. Sou um campo abandonado. A margem sem respiração. Mas o corpo jamais cessa, o corpo sabe a ciência certa da navegação no espaço, o corpo abre-se ao dia, circula no próprio dia, o corpo pode vencer a fria sombra do dia. Todas as palavras se iluminam ao lume certo do corpo que se despe, todas as palavras ficam nuas na tua sombra ardente. António Ramos Rosa.
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VONTADE Entrar em casa sem que a porta rangesse, sem que o cachorro da vizinha farejasse minha vinda sem que o sofá conservasse as formas do meu corpo, sem que eu precisasse tomar aquele copo de água que toca o azulejo e emite um som rouco, sem que houvesse corpo. Entrar em casa como a música entra nos ouvidos. Laura Liuzzi.
SAI DE CASA Rasga este poema depois de o leres. E depois espalha os bocados Pelo vasto mundo Ou então na tua rua, vai à aldeia, à praia, Atira-o ao mar,deita-o ao lixo, Para que venha o vento,o sol,a chuva,os homens do lixo, Acabar com ele de vez. Passado um dia, Sai de casa e procura Encontrá-lo de novo. Manuel Resende.
que eu aprenda tudo desde a morte, mas não me chamem por um nome nem pelo uso das coisas, colher, roupa, caneta, roupa intensa com a respiração dentro dela, e a tua mão sangra na minha, brilha inteira se um pouco da minha mão sangra e brilha, no toque entre os olhos, na boca, na rescrita de cada coisa já escrita nas entrelinhas das coisas, fiat cantus! e faça-se o canto esdrúxulo que regula a terra, o canto comum-de-dois, o inexaurível, o quanto se trabalha para que a noite apareça, e à noite se vê a luz que desaparece na mesa, chama-me pelo teu nome, troca-me, toca-me na boca sem idioma, já te não chamaste nunca, já estás pronta, já és toda Herberto Helder.
CANTO VI CANTO DA DESAPARIÇÃO I Aqui é o fim do mundo, aqui é o fim do mundo em que até aves vêm cantar para encerrá-lo. Em cada poço, dorme um cadáver, no fundo, e nos vastos areais — ossadas de cavalo. Entre as aves do céu: igual carnificina: se dormires cansado, à face do deserto, quando acordares hás de te assustar. Por certo, corvos te espreitarão sobre cada colina. E, se entoas teu canto a essa aves (teu canto que é debaixo dos céus, a mais triste canção), vem das aves a voz repetindo teu pranto. E, entre teu angustiado e surpreendido espanto, tangê-las-ás de ti, de ti mesmo, em que estão esses corvos fatais. E esses corvos não vão. Jorge de Lima.
Algumas perguntas a um 'homem bom' Bom, mas para que? Sim, não és venal, mas o ralo que sobre a casa sai também Não é venal. Nunca renegas o que disseste. Mas, o que disseste? És de boa fé, dás a tua opinião. Que opinião? Toma coragem contra quem? És cheio de sabedoria Pra quem? Não olhas aos teus interesses. Aos de quem olhas? És um bom amigo. Sê-lo-ás do bom povo? Escuta pois: nós sabemos que és nosso inimigo. Por isso vamos Encostar-te a paredão. Mas em consideração dos teus méritos e das tuas boas qualidades Escolhemos um bom paredão e vamos fuzilar-te com Boas balas atiradas por bons fuzis e enterrar-te com Uma boa pá debaixo de terra boa. Bertolt Brecht.
JANEIRO/FEVEREIRO Calendário Philips 1980 Nem só a cav idade da boca Nem só a língua Nem só os dentes e os lábios fazem a língua Ouça as mãos tecendo a língua e sua linguagem É a língua têxtil O texto que sai das mãos sem palavras Décio Pignatari.
ASSINATURA DO SOL VII É Iansã quem move esse motor de água invisível [ que sopra com a brisa. Toca a flauta fina do bambu e a folha dos [ caniços. Não a música das esferas, a matemática dos [ artifícios. É Iemanjá quem põe o globo a girar e mantém a [ Terra em órbita. Não a causa primeira. Primeiro motor e [ princípio. É Obatalá quem refaz o sonho branco da noite e [ destila a misericórdia das flores. O universo é o tambor de Xangô que toca na pele [ do espaço suas notas. Não a cruz pia do sangue e a carne servida em [ potes. A gravitação universal e seus cortes. É Exu quem corre veloz levando o vento e o [ manto da tarde de cobre nas patas aladas. Quem erra na cortina da chuva, telegrafa um [ relâmpago azul no nadir, entre o céu e a [ terra se move. Não o choque de duas nuvens. Mas o amor de [ dois deuses. Que fecunda a terra. Propaga a chuva. Revolve as árvores. Renova o [ sexo. Ora pela boca das aves. E morre. Rodrigo Petrônio.
Flávio BotelhoFazia tempo que eu não me sentia assim. Impotente, sem esperança, como se tivessem arrancado meu coração de dentro do meu peito. A última vez tinha sido na madrugada do acidente aéreo com a Chapecoense.
Eu estava acordado quando os primeiros relatos começaram a aparecer na internet, e lembro de ter ficado até cerca de 4 horas da manhã acompanhando as notícias sobre a tragédia que ocorrera na Colômbia. Com o coração despedaçado. Chorando como se conhecesse todos os que tinham falecido. E em 14 de março o sentimento que tomou conta de mim foi o mesmo. Executaram a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes no Centro do Rio. No Estácio. Em uma rua próxima ao prédio da Prefeitura, local onde eu vou trabalhar todos os dias. Nove disparos. Sem piedade. A sangue frio. Não votei na Marielle, não a conhecia. Mas ninguém pode negar o fato de que ela representava uma grande parcela da população carioca. O favelado. O cara que sai mais cedo do que todos os outros para conseguir chegar no trabalho ao mesmo tempo que todo mundo. Aquele que nunca teve voz. A pessoa que precisa fazer o dobro de esforço do que outros fazem para conseguir alcançar o mesmo objetivo. Marielle nasceu na favela da Maré. Era negra, lésbica, mãe, filha. E foi eleita vereadora do Rio de Janeiro com a quinta maior votação nas eleições de 2016. Uma representante do povo foi assassinada. As investigações estão em curso, mas dentro de mim já brota uma triste certeza: foi execução. Calaram a voz da Marielle. E não foi o tráfico que mandou executá-la. Não foram assaltantes que cometeram este crime bárbaro e cruel. Sabemos quem foi. Sabemos quem fez. Esse é o país em que vivemos. Essa é a cidade que, sem lei, vai perdendo seus filhos e suas filhas todos os dias. Sejam eles estudantes, policiais militares, trabalhadores ou vereadoras. Meu coração ficou outra vez despedaçado. Novamente, chorei copiosamente diante da televisão ligada por uma pessoa que não conheci. E, nos tempos da informação desenfreada e do compartilhamento incessante, o que mais entristeceu também foi ver as besteiras ditas com ar de verdade, as críticas e as tentativas de culpar Marielle e Anderson pela tragédia que os atingiu. Na cabeça de alguns uma vereadora negra de esquerda não pode se tornar um mártir da violência pública. Só quem pode é o policial morto em combate, a médica morta no arrastão. Na competição sanguinária de quem é mais significativo para este ou aquele grupo, mais uma família chora a morte do seu ente querido. Naquele 14 de março, a felicidade do futebol de quarta à noite não fez sentido. Dia após dia, o Rio de Janeiro vai dormir de luto. Marielle, você sempre estará presente. Nas nossas vidas, nos nossos corações, nos nossos gritos, nos nossos pensamentos. Marielle, presente! [para marielle] como aceitar que vá pra debaixo da terra quem tinha nome de mar? como suportar o criminoso calar de quem era a voz daqueles que ninguém escuta? como desejar que descanse em paz quem sempre foi de luta? Germana Zanettini.
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Julho 2017
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