Chove muito, chove excessivamente... Chove muito, chove excessivamente... Chove e de vez em quando faz um vento frio... Estou triste, muito triste, corno se o dia fosse eu. Num dia no meu futuro em que chova assim também E eu, à janela de repente me lembre do dia de hoje, Pensarei eu «ah nesse tempo eu era mais feliz» Ou pensarei «ah, que tempo triste foi aquele»! Ah, meu Deus, eu que pensarei deste dia nesse dia E o que serei, de que forma; o que me será o passado que é hoje só presente?... O ar está mais desagasalhado, mais frio, mais triste E há uma grande dúvida de chumbo no meu coração... Álvaro de Campos.
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ADVERTÊNCIAS Proíbe-se rezar, espirrar, Cuspir, elogiar, ajoelhar, Venerar, grunhir, expectorar. Neste recinto é proibido dormir Inocular, falar, excomungar Compor, fugir, interceptar. Rigorosamente proíbe-se correr. É proibido fumar e fornicar. Nicanor Parra (tradução de Frank Morais).
O TEMPO Só no passado a solidão é inexplicável. Tufo de plantas misteriosas o presente Mas o passado é como a noite escura Sôbre o mar escuro Embora irreal o abutre É incômodo meu sonho de ser real Ou somos nós aparições fantasiosas E forte e verdadeiro o abutre do rochedo Os que se lembram trazem no rosto A melancolia do defunto Ontem o mundo existe O agora é a hora da nossa morte Paulo Mendes Campos.
O fim do mundo No fim de um mundo melancólico os homens lêem jornais. Homens indiferentes a comer laranjas que ardem como o sol. Me deram uma maçã para lembrar a morte. Sei que cidades telegrafam pedindo querosene. O véu que olhei voar caiu no deserto. O poema final ninguém escreverá desse mundo particular de doze horas. Em vez de juízo final a mim preocupa o sonho final. João Cabral de Melo Neto.
a porca a escrivã é uma pessoa e está curiosa como são curiosas as pessoas pergunta-me por que bebi tanto não respondi mas sei que a gente bebe pra morrer sem ter que morrer muito pergunta-me por que não gritei já que não estava amordaçada não respondi mas sei que já se nasce com a mordaça a escrivã de camisa branca engomada é excelente funcionária e datilógrafa me lembra muito uma música um animal não lembro qual. Adelaide Ivánova.
PASSAGEM DO ANO O último dia do ano não é o último dia do tempo. Outros dias virão e novas coxas e ventres te comunicarão o [ calor da vida. Beijarás bocas, rasgarás papéis, farás viagens e tantas celebrações de aniversário, formatura, promoção, glória, [ doce morte com sinfonia e coral, que o tempo ficará repleto e não ouvirás o [ clamor, os irreparáveis uivos do lobo, na solidão. O último dia do tempo não é o último dia de tudo. Fica sempre uma franja de vida onde se sentam dois homens. Um homem e seu contrário, uma mulher e seu pé, um corpo e sua memória, um olho e seu brilho, uma voz e seu eco, e quem sabe até se Deus... Recebe com simplicidade este presente do [ acaso. Mereceste viver mais um ano. Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos [ séculos. Teu pai morreu, teu avô também. Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras [ espreitam a morte, mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo, e de copo na mão esperas amanhecer. O recurso de se embriagar. O recurso da dança e do grito, o recurso da bola colorida, o recurso de Kant e da poesia, todos eles... e nenhum resolve. Surge a manhã de um novo ano. As coisas estão limpas, ordenadas. O corpo gasto renova-se em espuma. Todos os sentidos alerta funcionam. A boca está comendo vida. A boca está entupida de vida. A vida escorre da boca, lambuza as mãos, a calçada. A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia. Carlos Drummond de Andrade.
Antes de um lugar há o seu nome. E ainda a viagem até ele, que é um outro lugar mais descontínuo e inominável. Lembro-me do quadriculado verde das colinas, do sol entretido pelos telhado ao longe, dos rebanhos empurrados nos carreiros, de um cão pequeno que se atreveu à estrada. Íamos ou vínhamos? Maria do Rosário Pedreira.
Eu desisto. Aliás, nem sei porque insisto Nessa de querer ser da sua vida Se já existe quem mais te fascine Quem faz com que tua poesia rime, Quem, no silêncio, te baste Seja justo então – me afaste Ponha-me no lugar devido Não insista nesse amor barato Nem me queira dessa forma – crua Nua de verdades e de amor Eu volto quando for preciso Com o que tenho, viverei Ludmila Monteiro.
enquanto apalpam rendas e sutiãs na terceira gaveta sinto-as descer ávidas, as mãos em mim ao longo da nuca percorrem as vértebras redesenham as curvas tropeçam no fêmur até que apaga-se a vontade e jogam-me no chão boneca, cuja mola quebrou Prisca Augustoni.
EPÍSTOLA AO FUTURO AMORMalú Nunes o desejo é de riscar o fósforo e explodir a estrada. observando os carros dançarem no ritmo apressado da rotina, acendo o cigarro e queimo por dentro. minha ruína foi perder o controle do sono e das palavras: durmo e calo de desgosto. é amargo o não querer na ponta da língua e distribuo longos beijos sem sabor por corpos alheios salgados de sexo casual. eu sou um bicho racional: é pele que mente, mente que repele. não apele, as asas se mantêm guardadas nos tecidos ou cabelos, mas ainda batem ininterruptamente. tatuagem, signo do meu livre arbítrio, do meu descaso em pousar - senhores passageiros, por segurança afrouxem os cintos e segurem o coração. não mais peito arregaçado, não mais borboletas passeando no meu estômago leve e levianamente afetado pelo álcool, e isso também é uma forma de amar. a mim mesma. com bravura me desbravo enquanto apronto a cama para quem fica na manhã seguinte e na seguinte e na seguinte. e me faça café enquanto fumo um cigarro antes de ir trabalhar e me beije dando bom dia e se entregue à rotina dizendo que vai sentir saudade. mas não hoje, nem amanhã. sem previsão para abrir o peito, brinco com as pernas. por entre pontas não dou nós. amar, verbo intransitivo, sentenciou Mário. gramática e semântica caminham juntas, razão e sentimento, te sujeito a objeto nessa oração. amém. tudo às claras para a gente se misturar no escuro: jogo é jogo, regra é regra. e quando a casa estiver pronta, que o amor seja bem-vindo. não bata à porta, se aposse de todo cantinho, se espalhe nas frestas e no colchão. eu vou comer o cheiro único concentrado nas maçãs do seu rosto, e suspirar observando seus olhos sorrirem. nada mais bonito que um sorriso de canto de olho. serei completamente apaixonada pelo seu, eu sei. sei porque me apaixono por coisas bobas e detalhes que me fazem tomar porres homéricos quando sinto saudade depois que acaba. sei também que vou rir até das piadas sem graça e brigar porque você se atrasou. olha, a gente nem se conhece, mas você vai se emocionar com os versos que lhe dedicarei, vai me amar loucamente e me achar a mulher mais incrível que já conheceu, afinal eu sou mesmo maravilhosa. em contrapartida, eu vou gravar cada risada e conversa, repeti-las mentalmente por horas a fio ao invés de preencher as planilhas do trabalho, entregar todo o bem que lateja nas minhas veias, doido para ser seu. então depois de tanta entrega, vamos suspirar de cansaço e cada qual com seu passo seguir a vida que há na frente, viraremos descaso do acaso. o amor é poesia barata, vulgar e volátil. pega a gente pela rima simples de folhetim. a gente só se dá conta do aperreio quando ensaia um riso frouxo e sem vergonha procurando as previsões do signo do outro no verso dos versos chulos na banca cheia de vozes e cheiros desagradáveis no meio da rodoviária do plano piloto. dádiva e desespero. e tem gosto doce que aflora por todos os lados da língua, quando beija um corpo que vibra no ritmo do peito. ele escorre como um rio cristalino pelas pernas e vai de encontro ao mar que mora no abraço que se dá em silêncio enquanto os dedos ainda formigam e o rosto ainda queima. então, quando eu for tão minha que possa então ficar na sua, pulo sem olhar para o chão e te entrego de bandeja minhas gargalhadas porque meu coração é transeunte, mas graças a deus nunca foi covarde.
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Julho 2017
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