Malú Nunes. Um grupo de amigos discutia calorosamente numa mesa de bar e do outro lado da rua alguém passava cabisbaixo e arredio. Havia uma mistura de vozes, música, carros, copos tilintando uns contra os outros e contra as mesas e contra as almas donas dos copos. Naquele instante um céu quente e de bordas azuis fitava meu rosto enrubescido pela atmosfera etílica. Enquanto o mundo vivia sob a expectativa de uma tradição milenar, era eu quem nascia na véspera. Era eu o cristo da tarde, desejando ser uma trindade, como o outro, para dar conta do batuque frenético de um coração rendido por trinta doses de prata e conversas intermináveis de cama e mesa. Era eu o cristo redentor, salvo por um beijo, fazendo do boteco da esquina a manjedoura onde repousaria o sentimento recém-nascido gerado pelo céu de bordas azuis - minha maria não-imaculada que não sabia rezar. Hão de pensar em heresia, mas pecado seria não registrar meu novo testamento: deixo para este ano os nós e as correntes que fechavam portas, janelas e todas as frestas de minh'alma; peço que em meu epitáfio escrevam "morreu após renascer".
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Malú Nunes De longe a tua acidez dá medo, mas aquele medo bom sabe? Daqueles que descobrimos o doce na primeira mordida acanhada num fruto desconhecido. De perto sua fúria é visível, olhos grandes como os meus, nariz imponente como dos nossos pais. Fúria contra quem? Partido do quê? Sinto falta da sua doçura dos anos 90, da parceria a qualquer custo, qualquer tostão. Mesmo tendo você do lado, há um abismo no acaso da vida, na nossa casa. Um mesmo lar tão craquelado por diversas visões. Estamos com vinte e poucos, eu nem tanto mais velha, mas mais experiente. Observo quieta teu mundo ruindo sufocando no peito um pedido de ajuda. Quero desatar esses nós na tua garganta, libera essa angústia, eu tô aqui. Quero te ver feliz, pleno, em paz. Confia nesse elo que não é apenas sanguíneo. Nesse ano só quero que você passe: por mim, de fase, que passe bem. Façamos um pacto: não se afaste sem poder segurar a onda sozinho. Sei que ainda precisa de outras mãos e elas podem ser minhas. Me chama. Pode não parecer, mas me importo com cada nota sofrida que tocas sozinho pela manhã, dedilhando a melodia da mesma canção. Me deixa sugerir novos acordes, alegrar teu violão? Eu te percebo e nosso lugar é comum. É um pedido de resgate, pra ambos, façamos as pazes, sejamos doces e deixemos que só o amor seja irredutível.
Malú Nunes Você já acordou com a sensação de que não é o mesmo de quando foi dormir? O sol que parecia escaldar seu juízo deixando a cabeça confusa de repente já te agrada e ilumina a trilha do caminho que se abriu. Tão gostoso sentir esse calor! A brisa que de hora em hora acarinha os cabelos e deixa os fios serem engolidos pelo riso frouxo enquanto os pés lentamente se movem na direção escolhida, arriscando uma dança desengonçada ao som de Cícero cantando "camomila".
É como ter embarcado numa viagem sem roteiro, só com destino, sem ninguém, sem bagagem. Acordei vazia, vazia dum jeito bom, sabe? É como se tivesse exalado na respiração tranquila do sono profundo os problemas e anseios, as crises e os medos, me preparado para encher a vida de bem, de sorrisos, de esperança. Despertei de braços dados com a reinvenção de mim mesma. Abri os olhos empoderada, sem obrigação com nada que não seja do meu interesse, fechando os ouvidos e tocando o foda-se para o que suga minhas energias e me faz temer ser o que guardo só pra mim. Eu que nunca me dava ao máximo e me contentava com pouco, que não arriscava, que tinha medo da solidão, mas só me permitia ao não; eu que a cada dia entregava um ponto por vez chamando em silêncio e sem fé por uma salvação divina, abri os olhos certo dia e me vi leve (quase flutuando sob o chão frio), ao constatar que a claridade da manhã havia levado o desespero de quem não sabe o que quer. Mesmo querendo tanto e cada vez mais. Olha, sei bem como é dar tudo sempre tão errado. Senti por várias vezes a desgraça respirando meu perfume quando de noite nos braços dela me entregava. É foda. Eu descobri que os clichês trazem verdades óbvias que só são descobertas rasgando o pulso, quebrando a cara: não tem receita, não adianta procurar, não adianta tentar fazer analogias profundas e forçadas da própria vida, nem culpar ou mandar o mundo inteiro pro inferno. O nosso inferno somos nós mesmos e tá no sangue escorrendo pelas mãos a cada golpe cruel que nos damos. Murro em ponta de faca, pancada latejando no próprio peito e não no de terceiros. Encontrei a solução nos meus olhos quando me dei mais uma chance ao percebê-los ausentes de minh’alma, vagos e vagabundos. As respostas vieram na ponta da língua e pude sentir a vivacidade do sal das perguntas, apertei os lábios com medo de deixar o sabor escapar e percebi que não seria necessário pois já havia sido resgatada por um sentimento sem signo, mas deveras significante. Olhar pra si. Nu, cru, frágil. Ouvir os acordes do mundo, a melodia da natureza, o seu próprio tom de voz, calar. Não desesperar nem esperar demais. Uma hora cê acorda e o sol já não vai mais cegar, o espelho revelará o prazer de estar vazio, revigorado e de pé, com a alma repleta de calma e boa vontade, a sua mão esquerda estará entrelaçada com a direita, será seu corpo reafirmando os laços com ele mesmo. Seus pés mal tocam o chão ao sair da cama, mas já sabem o caminho. Você sairá do quarto e só pelo tom de voz no seu “bom dia” perceberão que quem despertou não foi o mesmo que outrora ali adormeceu. Você abrirá a porta do quarto e a vida te abrirá um sorriso. Ao passo que os lábios, sem que você perceba, rasgar-se-ão mostrando os dentes agradecendo a cordialidade. Ao sair porta a fora sentirá que o passado partiu, tornando-se mais-que-perfeito. |
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Julho 2017
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