ASSINATURA DO SOL VII É Iansã quem move esse motor de água invisível [ que sopra com a brisa. Toca a flauta fina do bambu e a folha dos [ caniços. Não a música das esferas, a matemática dos [ artifícios. É Iemanjá quem põe o globo a girar e mantém a [ Terra em órbita. Não a causa primeira. Primeiro motor e [ princípio. É Obatalá quem refaz o sonho branco da noite e [ destila a misericórdia das flores. O universo é o tambor de Xangô que toca na pele [ do espaço suas notas. Não a cruz pia do sangue e a carne servida em [ potes. A gravitação universal e seus cortes. É Exu quem corre veloz levando o vento e o [ manto da tarde de cobre nas patas aladas. Quem erra na cortina da chuva, telegrafa um [ relâmpago azul no nadir, entre o céu e a [ terra se move. Não o choque de duas nuvens. Mas o amor de [ dois deuses. Que fecunda a terra. Propaga a chuva. Revolve as árvores. Renova o [ sexo. Ora pela boca das aves. E morre. Rodrigo Petrônio.
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A um ausente Tenho razão de sentir saudade, tenho razão de te acusar. Houve um pacto implícito que rompeste e sem te despedires foste embora. Detonaste o pacto. Detonaste a vida geral, a comum aquiescência de viver e explorar os rumos de obscuridade sem prazo sem consulta sem provocação até o limite das folhas caídas na hora de cair. Antecipaste a hora. Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas. Que poderias ter feito de mais grave do que o ato sem continuação, o ato em si, o ato que não ousamos nem sabemos ousar porque depois dele não há nada? Tenho razão para sentir saudade de ti, de nossa convivência em falas camaradas, simples apertar de mãos, nem isso, voz modulando sílabas conhecidas e banais que eram sempre certeza e segurança. Sim, tenho saudades. Sim, acuso-te porque fizeste o não previsto nas leis da amizade e da natureza nem nos deixaste sequer o direito de indagar porque o fizeste, porque te foste. Carlos Drummond de Andrade.
Se cada dia cai Se cada dia cai, dentro de cada noite, há um poço onde a claridade está presa. há que sentar-se na beira do poço da sombra e pescar luz caída com paciência. Pablo Neruda.
porto alegre, 2016 quando você viu na tv aquelas pessoas em fila na chuva à noite numa estrada na fronteira de um país que não as deseja e quando você viu as bombas caírem sobre cidades distantes com aquelas casas e ruas tão sujas e tão diferentes e quando você viu a polícia na praça do país estrangeiro partir pra cima de manifestantes com bombas de gás lacrimogêneo não pensou duas vezes nem trocou o canal e foi pegar comida na geladeira não reparou o que vinha que era só uma questão de tempo não interpretou como sinal a notícia não precisou estocar mantimentos agora a colher cai da boca e o barulho de bomba é ali fora e a polícia pra cima dos teus afetos munida de espadas, sobre cavalos Angélica Freitas.
Do amor contente e muito descontente – 6 Tudo é triste. Triste como nós Vivos ausentes, a cada dia esperando O imutável presente. Tudo é triste. Triste como eu Antiga de carícias De olhos e lamentos Lenta no andar, lenta Irmã De algum canto de ave De silêncio na nave, irmã. Vamos partir, amor. Subir e descer rios Caminhar nos caminhos Beijar Amar como feras Rir quando vier a tarde. E no cansaço Deitaremos imensos Na planície vazia de memórias. Hilda Hilst.
RAMO Talvez eu não consigo quanto amo ou amei teu ser dizer, talvez, como num mar que tu não vês o meu corpo submerso seja o ramo final que estendo já não sei a quem Gastão Cruz.
Todas as manhãs Todas as manhãs acoito sonhos e acalento entre a unha e a carne uma agudíssima dor. Todas as manhãs tenho os punhos sangrando e dormentes tal é a minha lida cavando, cavando torrões de terra, até lá, onde os homens enterram a esperança roubada de outros homens. Todas as manhãs junto ao nascente dia ouço a minha voz-banzo, âncora dos navios de nossa memória. E acredito, acredito sim que os nossos sonhos protegidos pelos lençóis da noite ao se abrirem um a um no varal de um novo tempo escorrem as nossas lágrimas fertilizando toda a terra onde negras sementes resistem reamanhecendo esperanças em nós. Conceição Evaristo.
Pequenas ocupações da poesia a procura da palavra mágica a contrasenha do apocalipse o codinome do diabo os esconjuros as juras aquém-além palavra amor e outros monstros inomináveis Iracema é anagrama de América termo é anagrama de morte dog, em inglês, é o contrário de deus Geraldo Carneiro.
Um homem e seu Carnaval Deus me abandonou no meio da orgia entre uma baiana e uma egípcia. Estou perdido. Sem olhos, sem boca sem dimensões. As fitas, as cores, os barulhos passam por mim de raspão. Pobre poesia. O pandeiro bate é dentro do peito mas ninguém percebe. Estou lívido, gago. Eternas namoradas riem para mim demonstrando os corpos, os dentes. Impossível perdoá-las, sequer esquecê-las. Deus me abandonou no meio do rio. Estou me afogando peixes sulfúreos ondas de éter curvas curvas curvas bandeiras de préstitos pneus silenciosos grandes abraços largos espaços eternamente. Carlos Drummond de Andrade.
Chove muito, chove excessivamente... Chove muito, chove excessivamente... Chove e de vez em quando faz um vento frio... Estou triste, muito triste, corno se o dia fosse eu. Num dia no meu futuro em que chova assim também E eu, à janela de repente me lembre do dia de hoje, Pensarei eu «ah nesse tempo eu era mais feliz» Ou pensarei «ah, que tempo triste foi aquele»! Ah, meu Deus, eu que pensarei deste dia nesse dia E o que serei, de que forma; o que me será o passado que é hoje só presente?... O ar está mais desagasalhado, mais frio, mais triste E há uma grande dúvida de chumbo no meu coração... Álvaro de Campos.
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Julho 2017
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