Ana GuadalupePor Rafael Bessa Grande parte da literatura nacional recente me parece misturar uma certa herança lírica com a despretensão típica da nossa década. Um novo tempo traz também novos significados sobre o que seria a poesia e à que ela se propõe. Essa impressão se confirmou quando conheci os escritos da Ana Guadalupe. Ana nasceu em 1985 em Londrina, no Paraná. Estudou letras na Universidade Estadual de Maringá e hoje mora em São Paulo. Seus poemas surpreendem por testar o limite do poético ao tematizar o cotidiano e seus embates. A frustração do banal é tratada com humor, e a nostalgia é contraposta à ironia. Mas é talvez na estrutura dos escritos que reside a estética da autora: articulando nos versos o ritmo irregular que lhe torna peculiar. Ana Guadalupe publicou em 2011 o Relógio de Pulso pela editora 7Letras e em 2015 escreveu Não Conheço Ninguém que Não Seja Artista, em coautoria com a fotógrafa Camila Svenson. — Infeliz em Santa Catarina fui infeliz em santa catarina em manhãs tétricas voltando pra casa em tardes chuvosas escorregando nas ruas de chinelos e camiseta branca com um pássaro na estampa em santa catarina fui infeliz na maioria dos dias cultivei bichos de pé e outros parasitas os animais de casa tiveram pulgas e é claro que morreram jovens no vento fatal de santa catarina os eletrônicos mofaram ao mesmo tempo em orquestra não sobrou aparelho de som ou secador de cabelo pra movimentar o quarto fui infeliz em santa catarina quando meu primeiro amor me chamou pra um encontro que não passava de um culto religioso em que apenas o espírito santo me beijaria em santa catarina fui infeliz em casa, no ponto de ônibus, na ponte, na barraca de crepes, na pastelaria enquanto os catarinenses abriam os dentes e repetiam “meu senhor, guria” comprovei nas praias perigosas de santa catarina que as águas do rio tendem a te afogar no mangue e as águas do mar podem trazer o cadáver de um homem em pleno domingo — aproveitar a vida sem saber o que vai acontecer daqui a duas ou três semanas fica difícil aproveitar a vida ir ao café com amigos olhar o cardápio sem medo rir comendo bolo esquecer centenas de doenças tragédias das masi terríveis cenários perigosos pra qualquer hora a enorme lista de opções oferecidas pelo mistério ou pelo acaso é mais imaginativa no que pode dar errado — a/c proprietário do imóvel
caro proprietário deste imóvel em que vivo já há algum tempo sem nunca no entanto abandonar o medo de você acordar meio mal-humorado ou querendo abrigar seu sobrinho que faz faculdade de cinema ou apenas irritado com meus hábitos noturnos conforme informaram os gestores do condomínio acredito ingenuamente que se você me conhecesse mudaria de ideia de forma brusca enfrentaria a reprovação dos parentes se você me conhecesse veria meu esforço e esmero saberia que morei em outros 23 espaços alugados antes de chegar rolando a este se então fôssemos amigos que se conhecem há menos de um mês mas já se compreendem profundo você notaria que sua renda total é suficiente e que eu tenho tristezas o bastante para que você me liberte dos valores e avise rapidamente os gestores que tenho o direito de residir para sempre e livre de medo neste seu apartamento
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André DahmerPor Rafael Bessa Muitos já conhecem o André Dahmer como o desenhista e quadrinista autor das tirinhas dos Malvados, famosas pelo humor ácido e crítico. Descobrir que Dahmer como poeta é tão ou mais certeiro foi minha grata surpresa. Nascido no Rio de Janeiro em 1974, seus poemas oscilam em proximidade e distância com o estilo dos quadrinhos – há uma aura de sarcasmo e questionamento que permeia boa parte dos escritos. Mas o ponto de vista subjetivo e o caráter contemplativo dos poemas são os pontos que sobressaem ao casarem com o formato moderno do verso livre. André Dahmer traduz a estética e os afetos da contemporaneidade: breve, incerto, cotidiano. Tocando a excelência sempre sem querer, no exercício de só deixar correr o conflito que lhe é intrínseco. André Dahmer publicou seu livro de poemas A Coragem do Primeiro Pássaro em 2015 pela editora Lote42. Além de ser autor de outros 7 livros como desenhista. Publica diariamente seus quadrinhos nos jornais Folha de S.Paulo e O Globo, além de já ter colaborado com publicações como o Jornal do Brasil, o portal G1 e as revistas piauí, Caros Amigos e Sexy. 1 uma música salvou minha vida quando eu nascia de saudades de você ainda hoje cozinho porções para duas pessoas sei me virar sozinho sei me cuidar muito bem telegrama da minha amiga morte: na falta de árvores abrace um poste 2 ela me deixou com cara de quem apanhou da vida as bolsinhas de gordura de olhos que me lavam não raro até o pescoço já não passo um só dia sem tomar banho quando choro de pé cobra que bebe do próprio veneno se choro deitado gota que encontra lar no meu ouvido 3
permaneço calmo antes de você chegar aos pés do seu pescoço avisto um lóbulo que suporta o fardo do outro e da prata penso como é triste revê-la vestida se sinto sua carne de anjo a rosnar pela casa preparo minha cama do tamanho da ásia Carminha Gouthier (12/04/1903 - 05/06/1983)Por Rafael Bessa Quando tive o primeiro contato com um poema de Carminha Gouthier (Maria do Carmo Sousa Coelho), tive certeza que estava lendo um escrito de alguma santa mística católica, como Santa Teresa de Ávila. Logo, fiquei surpreso ao descobrir que eram de uma intrigante e pouco conhecida poetisa mineira. Carminha Gouthier, nasceu em Dores do Indaiá em 1903 e é considerada uma das maiores vozes femininas da poesia mística do Brasil. Além da profunda espiritualidade, há nos poemas uma aura idílica e um recorrente estranhamento do absoluto e das ausências. Devido ao seu modo de vida modesto, teve apenas dois livros publicados, por insistência de amigos: A Luz e O Trigo, publicado 1961 e Espantalho de Deus, de 1967. Após sua morte foi publicada uma reunião dos seus poemas, chamado MYSTICA POESIA. Vieste para mim, que ando devagar no trilho aberto pelo Teu Lenho. Cerro os olhos à violência da Luz, fecho os ouvidos, que a Verdade é forte demais para a indigência dos sentidos. Sou capaz de dormir indiferente ao Suor de Sangue que escorre da traição, tingindo as raízes do mundo, ungindo os pés da Esposa para a travessia dos séculos. E talvez negue minha origem, se os servos indiscretos reconhecerem Teu sotaque na minha voz. Vieste para mim, que tenho a lança na altura do Teu Coração. Com o Óleo da Alegria
Se não queres que descanse nos Teus ombros minha fronte atormentada... E não me convidas para as colheitas de trigo, onde espigas vibram à música de Tuas Palavras... Nem me permites brincar com algas e conchas na areia da praia, onde os Teus consertam redes, no oficio de pescar... Se tropeço nas raízes da Cruz, ao colher as flores que amanhecem nos Teus rastros. E tenho de ficar sozinha, esquecida, até que venhas... Unge meus olhos, para que Te reconheçam sob o véu de todas as ausências. E meus joelhos, para que possa equilibrar-me nesse fio de luz estendido sobre os abismos. |
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