A um ausente Tenho razão de sentir saudade, tenho razão de te acusar. Houve um pacto implícito que rompeste e sem te despedires foste embora. Detonaste o pacto. Detonaste a vida geral, a comum aquiescência de viver e explorar os rumos de obscuridade sem prazo sem consulta sem provocação até o limite das folhas caídas na hora de cair. Antecipaste a hora. Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas. Que poderias ter feito de mais grave do que o ato sem continuação, o ato em si, o ato que não ousamos nem sabemos ousar porque depois dele não há nada? Tenho razão para sentir saudade de ti, de nossa convivência em falas camaradas, simples apertar de mãos, nem isso, voz modulando sílabas conhecidas e banais que eram sempre certeza e segurança. Sim, tenho saudades. Sim, acuso-te porque fizeste o não previsto nas leis da amizade e da natureza nem nos deixaste sequer o direito de indagar porque o fizeste, porque te foste. Carlos Drummond de Andrade.
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A um coração "Coração de Filigrana de Oiro" Ai! Pobre coração! Assim vazio E frio Sem guardar a lembrança de um amor! Nada em teus seio os dias hão deixado!... É fado? Nem relíquias de um sonho encantador? Não frio coração! É que na terra Ninguém te abriu... Nada teu seio encerra! O vácuo apenas queres tu conter! Não te faltam suspiros delirantes, nem lágrimas de afeto verdadeiro... É que nem mesmo - o oceano inteiro - Poderia te encher!... Castro Alves.
Se cada dia cai Se cada dia cai, dentro de cada noite, há um poço onde a claridade está presa. há que sentar-se na beira do poço da sombra e pescar luz caída com paciência. Pablo Neruda.
porto alegre, 2016 quando você viu na tv aquelas pessoas em fila na chuva à noite numa estrada na fronteira de um país que não as deseja e quando você viu as bombas caírem sobre cidades distantes com aquelas casas e ruas tão sujas e tão diferentes e quando você viu a polícia na praça do país estrangeiro partir pra cima de manifestantes com bombas de gás lacrimogêneo não pensou duas vezes nem trocou o canal e foi pegar comida na geladeira não reparou o que vinha que era só uma questão de tempo não interpretou como sinal a notícia não precisou estocar mantimentos agora a colher cai da boca e o barulho de bomba é ali fora e a polícia pra cima dos teus afetos munida de espadas, sobre cavalos Angélica Freitas.
Do amor contente e muito descontente – 6 Tudo é triste. Triste como nós Vivos ausentes, a cada dia esperando O imutável presente. Tudo é triste. Triste como eu Antiga de carícias De olhos e lamentos Lenta no andar, lenta Irmã De algum canto de ave De silêncio na nave, irmã. Vamos partir, amor. Subir e descer rios Caminhar nos caminhos Beijar Amar como feras Rir quando vier a tarde. E no cansaço Deitaremos imensos Na planície vazia de memórias. Hilda Hilst.
RAMO Talvez eu não consigo quanto amo ou amei teu ser dizer, talvez, como num mar que tu não vês o meu corpo submerso seja o ramo final que estendo já não sei a quem Gastão Cruz.
Todas as manhãs Todas as manhãs acoito sonhos e acalento entre a unha e a carne uma agudíssima dor. Todas as manhãs tenho os punhos sangrando e dormentes tal é a minha lida cavando, cavando torrões de terra, até lá, onde os homens enterram a esperança roubada de outros homens. Todas as manhãs junto ao nascente dia ouço a minha voz-banzo, âncora dos navios de nossa memória. E acredito, acredito sim que os nossos sonhos protegidos pelos lençóis da noite ao se abrirem um a um no varal de um novo tempo escorrem as nossas lágrimas fertilizando toda a terra onde negras sementes resistem reamanhecendo esperanças em nós. Conceição Evaristo.
Pequenas ocupações da poesia a procura da palavra mágica a contrasenha do apocalipse o codinome do diabo os esconjuros as juras aquém-além palavra amor e outros monstros inomináveis Iracema é anagrama de América termo é anagrama de morte dog, em inglês, é o contrário de deus Geraldo Carneiro.
3 poemas de Gabriela SobralBICHO Projeto de bicho dizem: bicho do mato porém, simpático digo: bicho de lama porém, afeita a banhos As pedras não arranham bicho de ferro caia à vontade porque: formada de dobradiças lado e de lado a volta é o próximo avanço Que o tempo passe porque: passarei dona dos lares manipulável e reagente O peito, ainda que orfandade, virou mãe. CORTINA Os historiadores não saem na linha de pagamento Precisa-se de arqueólogos Função: esqueletar a besta Ela é grande e sorri Taxionomia: de bem Os cadernos passam rápidos sobre ela destroem sua materialidade a carbonizam O objetivo? fumaça Somos testemunhas de seus restos eles falarão sobre nós E a vida continua. ACIDENTE DOMÉSTICO II Essa é uma conversa de quarto, do ele qualquer. Cada pontuação é de um sem medo. Mas não acho que és bem resolvido. Eu não castigaria ninguém com essa alegoria dos condomínios e das associações simuladas. O que há é a consciência honesta e majestosa da cafajestagem. Em um estalo, tu e o amigo da ladeira fecharam o buraco do projetor, sem aviso, a lente quebrou dentro do olho, este o motivo de andarem agua- dos. Não deduzi nada, tudo foi dito em tom de confissão. Jogo de joga verde e colhe maduro, tão infantil que ri quando caiu. Mas não desmereço a conduta, digna de inscrição nos tomos de ética. Certamente nunca escolherás cortinas de vidro para tua casa, com certeza serão vitrais narrativos. O evangelho de hoje mostrou a tormenta em cima da mesa, os anunciados caminham sobre ela. Enquanto me convenço que, aqui, não existe profundidade. O que suspeitam ser habilidade, é o truque de quem aprendeu a afundar e tirar pedras do bolso. Não ganho campeonatos, não há quem segure a bomba de respirar. A autora:
Gabriela Sobral (1990) nasceu em Belém-PA. É escritora de infância, após muitos anos de pausa, foi revisitando esta fase que voltou a escrever. Formou-se em jornalismo em Brasília, onde morou por sete anos e despertada pelo trânsito transpôs isso em linguagem. Expandindo-se, concluiu o mestrado em Preservação do Patrimônio Cultural pelo (IPHAN). Um homem e seu Carnaval Deus me abandonou no meio da orgia entre uma baiana e uma egípcia. Estou perdido. Sem olhos, sem boca sem dimensões. As fitas, as cores, os barulhos passam por mim de raspão. Pobre poesia. O pandeiro bate é dentro do peito mas ninguém percebe. Estou lívido, gago. Eternas namoradas riem para mim demonstrando os corpos, os dentes. Impossível perdoá-las, sequer esquecê-las. Deus me abandonou no meio do rio. Estou me afogando peixes sulfúreos ondas de éter curvas curvas curvas bandeiras de préstitos pneus silenciosos grandes abraços largos espaços eternamente. Carlos Drummond de Andrade.
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Julho 2017
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