Capítulo Primeiro Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítimas defesa – e qual defesa seria mais legítima? – logrei ser absolvido por cinco votos contra dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris. Deixei crescer a barba em pensamento, comprei um par de óculos para míope, e passava as noites espiando o céu estrelado, um cigarro entre os dedos. Chamava-me então Adilson, mas logo mudei para Heitor, depois Ruy Barbo, depois finalmente Astrogildo, que é como me chamo ainda hoje, quando me chamo. A primeira mulher que possuí foi sob a ponte do Sena, em pleno coração do meu Paris imaginário; e ainda me lembro de que ela me sorria com uns dentes que refletiam as estrelas e as lâmpadas do cais adormecido, e dizia-me coisas numa língua que eu não conhecia. Paguei-lhe à vista, e subi eufórico em direção a uma rua de onde vinham sons de uma mandolinata inenarrável, e que se esvanecia à medida que eu me aproximava, e que acabou por desaparecer de todo. Sentei-me no chão, aturdido acendi um cigarro e deixei que ele fumasse por si mesmo, e depois morri tranquilamente, dentro da noite calma. Campos de Carvalho.
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como dizê-lo, como continuar, esfacelar a razão repetindo que não é somente um sonho, que se o vejo em sonhos como a qualquer de meus mortos, ele é outra coisa, está aí, dentro e fora, vivo se bem que o que vejo dele, o que ouço dele: a doença o aperta, fixa-o nesta última aparência que é minha recordação dele há trinta e um anos; assim está agora, assim é Por que é que você vive se adoeceu outra vez, se vai morrer outra vez? E quando morrer, Paco, o que vai acontecer entre nós dois? Vou saber que você morreu, vou sonhar, já que o sonho é a única zona onde posso vê-lo, que o enterramos de novo? E depois disso, vou deixar de sonhar, saberei que está morto de verdade? Porque já faz muitos anos, Paco, que você está vivo aí onde nos encontramos, mas com uma vida inútil e murcha, desta vez sua doença dura interminavelmente mais que a outra, passam-se semanas ou meses, passa Paris ou Quito ou Genebra e então vem Cláudio e me abraça, Cláudio tão jovem e garoto chorando quieto no meu ombro, avisando-me que você está mal, que suba para vê-lo, às vezes é um café mas quase sempre é preciso subir a escada estreita daquela casa que já puseram abaixo, de um táxi olhei há um ano aquele quarteirão de Rivadavia na altura de Once e soube que a casa já não estava lá ou que a haviam reformado, que faltam a porta e a escada estreita que levava ao primeiro andar, aos quartos de pé-direito alto e de gessos amarelos, passam-se semanas ou meses e de novo sei que tenho de ir vê-lo, ou simplesmente o encontro em qualquer lugar ou sei que está em qualquer lugar embora não o veja, e nada acaba, nada começa nem acaba enquanto durmo ou depois no escritório ou aqui escrevendo, você vivo para quê, você vivo por quê, Paco, aí, mas onde, meu velho, onde e até quando. Julio Cortázar, "Aí, mas onde, como?", in Octaedro.
Depois que Ana me deixou, muitos meses depois, veio o ciclo das anunciações, do I Ching, dos búzios, cartas de Tarot, pêndulos, vidências, números e axés - ela volta, garantiam, mas ela não voltava - e veio então o ciclo das terapias de grupo, dos psicodramas, sonhos junguianos, workshops transacionais, e veio ainda o ciclo da humildade, com promessas a Santo Antônio, velas de sete dias, novenas de Santa Rita, donativos para as pobres criancinhas & velhinhos desamparados, e veio depois o ciclo do novo corte de cabelos, da outra armação para os óculos, guarda-roupa mais jovem, Zoomp, Mr. Wonderful, musculação, alongamento, ioga, natação, tai-chi, halteres, cooper, e fui ficando tão bonito e renovado e superado e liberado e esquecido dos tempos em que Ana ainda não tinha me deixado que permiti, então, que viesse também o ciclo dos fins de semana em Búzios, Guarujá ou Monte Verde e de repente quem sabe Cana, mulher de Vicente, tão compreensiva & madura, e inesperadamente Mariana, irmã de Vicente, tão disponível & natural em seu fio-dental metálico e, por que não, afinal, o próprio Vicente, tão solícito na maneira como colocava pedras de gelo no meu escocês ou batia outra generosa carreira sobre a pedra de ágata, encostando levemente sua musculosa coxa queimada de sol e windsurf na minha musculosa coxa também queimada de sol e windsurf. Passou-se tanto tempo depois que Ana me deixou, e eu sobrevivi, que o mundo foi-se tornando aos poucos um enorme leque escancarado de mil possibilidades além de Ana. Ah esse mundo de agora, assim tão cheio de mulheres e homens lindos e sedutores e interessantes e interessados em mim, que aprendi o jeito de também ser lindo, depois de todos os exercícios para esquecer Ana, e também posso ser sedutor com aquele charme todo especial de homem-quase-maduro-que-já-foi-marcado-por-um-grande-amor-perdido, embora tenha a delicadeza de jamais tocar no assunto. Porque nunca contei a ninguém de Ana. Nunca ninguém soube de Ana em minha vida. Nunca dividi Ana com ninguém. Nunca ninguém jamais soube de tudo isso ou aquilo que aconteceu quando e depois que Ana me deixou. Caio Fernando Abreu, "Sem Ana, Blues", in Os Dragões Não Conhecem o Paraíso.
ESTILO — Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio... Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro... Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida... compreende?... a nossa vida, a vida inteira, está ali como... como um acontecimento excessivo... Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é um modo sutil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significa ção. Faço-me entender? Não? Bem, não agüentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte. Percebe? Uma dessas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas ou meses ou anos? Uma vez fui a um médico. — Doutor, estou louco — disse. — Devo estar louco. — Tem loucos na família? - perguntou o médico. — Alcoólicos, sifilíticos? — Sim, senhor. O pior. Loucos, alcoólicos, sifilíticos, místicos, prostitutas, homossexuais. Estarei louco? O médico tinha sentido de humor, e receitou-me barbitúricos. — Não preciso de remédios - disse eu. — Sei histórias tenebrosas acerca da vida. De que me servem barbitúricos? A verdade é que eu ainda não havia encontrado o estilo. Mas ouça, meu amigo: conheço por exemplo a história de um homem velho. Conheço também a de um homem novo. A do velho é melhor, pois era muito velho, e que poderia ele esperar? Mas veja, preste bem atenção. Esse homem velhíssimo não se resignaria nunca a prescindir do amor. Amava as flores. No meio da sua solidão tinha vasos de orquídeas. O mundo é assim, que quer? E forçoso encontrar um estilo. Seria bom colocar grandes cartazes nas ruas, fazer avisos na televisão e nos cinemas. Procure o seu estilo, se não quer dar em pantanas. Arranjei o meu estilo estudando matemática e ouvindo um pouco de música. — João Sebastião Bach. Conhece o Concerto Brandeburguês n°5? Conhece com certeza essa coisa tão simples, tão harmoniosa e definitiva que é um sistema de três equações e três incógnitas. Primário, rudimentar. Resolvi milhares de equações. Depois ouvia Bach. Consegui um estilo. Aplico-o à noite, quando acordo às quatro da madrugada. É simples: quando acordo aterrorizado, vendo as grandes sombras incompreensíveis erguerem-se no meio do quarto, quando a pequena luz se faz na ponta dos dedos, e toda a imensa melancolia do mundo parece subir do sangue com a sua voz obscura... Começo a fazer o meu estilo. Admirável exercí cio, este. Às vezes uso o processo de esvaziar as palavras. Sabe como é? Pego numa palavra fundamental. Palavras fundamentais, curioso... Pego numa palavra fundamental: Amor, Doença, Medo, Morte, Metamorfose. Digo-a baixo vinte vezes. Já não significa. E um modo de alcançar o estilo. Veja agora esta artimanha: As crianças enlouquecem em coisas de poesia. Escutai um instante como ficam presas no alto desse grito, como a eternidade as acolhe enquanto gritam e gritam. (...) — E nada mais somos do que o Poema onde as crianças se distanciam loucamente. Trata-se do excerto de uma poesia. Gosta de poesia? Sabe o que é poesia? Tem medo da poesia? Tem o demoníaco júbilo da poesia? Pois veja. É também um estilo. O poeta não morre da morte da poesia. É o estilo. Está a ouvir como essas enormes crianças gritam e gritam, entrando na eternidade? Note: somos o Poema onde elas se distanciam. Como? Loucamente. Quem suportaria esses gritos magníficos? Mas o poeta faz o estilo. Perdão, seja um pouco mais honesto. Seja ao menos mais inteligente. Vê-se bem que não estou louco. Eu, não. As crianças é que enlouquecem, e isso é porque lhes falta um estilo. Sabe do que lhe estive a falar? Da vida? Da maneira de se desembaraçar dela? Bem, o senhor não é estúpido, mas também não é muito inteligente. Conheço. Conheço o gênero. Talvez eu já tivesse sido assim. Pratica as artes com parcimônia: não a poesia, mas as poesias. Cultiva-se, evidentemente. Se calhar está demasiado na posse de um estilo. Mas, escute cá, a loucura, a tenebrosa e maravilhosa loucura... Enfim, não seria isso mais nobre, digamos, mais conforme ao grande segredo da nossa humanidade? Talvez o senhor seja mais inteligente do que eu. Herberto Helder in Os Passos Em Volta.
Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente. Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios. Há criaturas que não suporto. Os vagabundos, por exemplo. Parece-me que eles cresceram muito, e, aproximando-se de mim, não vão gemer peditórios: vão gritar, exigir, tomar-me qualquer coisa. Certos lugares que me davam prazer tornaram-se odiosos. Passo diante de uma livraria, olho com desgosto as vitrinas, tenho a impressão de que se acham ali pessoas exibindo títulos e preços nos rostos, vendendo-se. É uma espécie de prostituição. Um sujeito chega, atenta, encolhendo os ombros ou estirando o beiço, naqueles desconhecidos que se amontoam por detrás do vidro. Outro larga uma opinião à-toa. Basbaques escutam, saem. E os autores, resignados, mostram as letras e os algarismos, oferecendo-se como as mulheres da Rua da Lama. Vivo agitado, cheio de terrores, uma tremura nas mãos, que emagreceram. As mãos já não são minhas: são mãos de velho, fracas e inúteis. As escoriações das palmas cicatrizaram. Impossível trabalhar. Dão-me um ofício, um relatório, para datilografar, na repartição. Até dez linhas vou bem. Daí em diante a cara balofa de Julião Tavares aparece em cima do original, e os meus dedos encontram no teclado uma resistência mole de carne gorda. E lá vem o erro. Tento vencer a obsessão, capricho em não usar a borracha. Concluo o trabalho, mas a resma de papel fica muito reduzida. Graciliano Ramos.
"_ _ _ _ _ _ _ _ estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria chamar desorganização, e teria a segurança de me aventurar, porque saberia depois para onde voltar: para a organização anterior. A isso prefiro chamar desorganização pois não quero me confirmar no que vivi - na confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o tinha, e sei que não tenho capacidade para outro." Clarice Lispector in A Paixão Segundo G.H. (1964).
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Julho 2017
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