ouve-me que o dia te seja limpo e a cada esquina de luz possas recolher alimento suficiente para a tua morte vai até onde ninguém te possa falar ou reconhecer – vai por esse campo de crateras extintas – vai por essa porta de água tão vasta quanto a noite deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te e as loucas aveias que o ácido enferrujou erguerem-se na vertigem do voo – deixa que o outono traga os pássaros e as abelhas para pernoitarem na doçura do teu breve coração – ouve-me que o dia te seja limpo e para lá da pele constrói o arco de sal a morada eterna – o mar por onde fugirá o etéreo visitante desta noite não esqueças o navio carregado de lumes de desejos em poeira – não esqueças o ouro o marfim – os sessenta comprimidos letais ao pequeno-almoço Al Berto.
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Malú Nunes. Um grupo de amigos discutia calorosamente numa mesa de bar e do outro lado da rua alguém passava cabisbaixo e arredio. Havia uma mistura de vozes, música, carros, copos tilintando uns contra os outros e contra as mesas e contra as almas donas dos copos. Naquele instante um céu quente e de bordas azuis fitava meu rosto enrubescido pela atmosfera etílica. Enquanto o mundo vivia sob a expectativa de uma tradição milenar, era eu quem nascia na véspera. Era eu o cristo da tarde, desejando ser uma trindade, como o outro, para dar conta do batuque frenético de um coração rendido por trinta doses de prata e conversas intermináveis de cama e mesa. Era eu o cristo redentor, salvo por um beijo, fazendo do boteco da esquina a manjedoura onde repousaria o sentimento recém-nascido gerado pelo céu de bordas azuis - minha maria não-imaculada que não sabia rezar. Hão de pensar em heresia, mas pecado seria não registrar meu novo testamento: deixo para este ano os nós e as correntes que fechavam portas, janelas e todas as frestas de minh'alma; peço que em meu epitáfio escrevam "morreu após renascer".
Ana GuadalupePor Rafael Bessa Grande parte da literatura nacional recente me parece misturar uma certa herança lírica com a despretensão típica da nossa década. Um novo tempo traz também novos significados sobre o que seria a poesia e à que ela se propõe. Essa impressão se confirmou quando conheci os escritos da Ana Guadalupe. Ana nasceu em 1985 em Londrina, no Paraná. Estudou letras na Universidade Estadual de Maringá e hoje mora em São Paulo. Seus poemas surpreendem por testar o limite do poético ao tematizar o cotidiano e seus embates. A frustração do banal é tratada com humor, e a nostalgia é contraposta à ironia. Mas é talvez na estrutura dos escritos que reside a estética da autora: articulando nos versos o ritmo irregular que lhe torna peculiar. Ana Guadalupe publicou em 2011 o Relógio de Pulso pela editora 7Letras e em 2015 escreveu Não Conheço Ninguém que Não Seja Artista, em coautoria com a fotógrafa Camila Svenson. — Infeliz em Santa Catarina fui infeliz em santa catarina em manhãs tétricas voltando pra casa em tardes chuvosas escorregando nas ruas de chinelos e camiseta branca com um pássaro na estampa em santa catarina fui infeliz na maioria dos dias cultivei bichos de pé e outros parasitas os animais de casa tiveram pulgas e é claro que morreram jovens no vento fatal de santa catarina os eletrônicos mofaram ao mesmo tempo em orquestra não sobrou aparelho de som ou secador de cabelo pra movimentar o quarto fui infeliz em santa catarina quando meu primeiro amor me chamou pra um encontro que não passava de um culto religioso em que apenas o espírito santo me beijaria em santa catarina fui infeliz em casa, no ponto de ônibus, na ponte, na barraca de crepes, na pastelaria enquanto os catarinenses abriam os dentes e repetiam “meu senhor, guria” comprovei nas praias perigosas de santa catarina que as águas do rio tendem a te afogar no mangue e as águas do mar podem trazer o cadáver de um homem em pleno domingo — aproveitar a vida sem saber o que vai acontecer daqui a duas ou três semanas fica difícil aproveitar a vida ir ao café com amigos olhar o cardápio sem medo rir comendo bolo esquecer centenas de doenças tragédias das masi terríveis cenários perigosos pra qualquer hora a enorme lista de opções oferecidas pelo mistério ou pelo acaso é mais imaginativa no que pode dar errado — a/c proprietário do imóvel
caro proprietário deste imóvel em que vivo já há algum tempo sem nunca no entanto abandonar o medo de você acordar meio mal-humorado ou querendo abrigar seu sobrinho que faz faculdade de cinema ou apenas irritado com meus hábitos noturnos conforme informaram os gestores do condomínio acredito ingenuamente que se você me conhecesse mudaria de ideia de forma brusca enfrentaria a reprovação dos parentes se você me conhecesse veria meu esforço e esmero saberia que morei em outros 23 espaços alugados antes de chegar rolando a este se então fôssemos amigos que se conhecem há menos de um mês mas já se compreendem profundo você notaria que sua renda total é suficiente e que eu tenho tristezas o bastante para que você me liberte dos valores e avise rapidamente os gestores que tenho o direito de residir para sempre e livre de medo neste seu apartamento Ego vou procurar-te em toda a extensão do meu corpo, sei que me habitas, sepultado algures no meu ego. se não estás aqui, estás nas entranhas das estrelas e é igual, é a língua de um filme que achaste medíocre por ser abstracto, é o leque cromático da gramática que me impinges, são os nervos exaltados que gritam com o poema e é o poema que grita e as palavras que estremecem até aos tendões. cravo cada letra até à mais profunda solidão e as folhas lamentam o peso das sílabas. Sara F. Costa.
Malú Nunes De longe a tua acidez dá medo, mas aquele medo bom sabe? Daqueles que descobrimos o doce na primeira mordida acanhada num fruto desconhecido. De perto sua fúria é visível, olhos grandes como os meus, nariz imponente como dos nossos pais. Fúria contra quem? Partido do quê? Sinto falta da sua doçura dos anos 90, da parceria a qualquer custo, qualquer tostão. Mesmo tendo você do lado, há um abismo no acaso da vida, na nossa casa. Um mesmo lar tão craquelado por diversas visões. Estamos com vinte e poucos, eu nem tanto mais velha, mas mais experiente. Observo quieta teu mundo ruindo sufocando no peito um pedido de ajuda. Quero desatar esses nós na tua garganta, libera essa angústia, eu tô aqui. Quero te ver feliz, pleno, em paz. Confia nesse elo que não é apenas sanguíneo. Nesse ano só quero que você passe: por mim, de fase, que passe bem. Façamos um pacto: não se afaste sem poder segurar a onda sozinho. Sei que ainda precisa de outras mãos e elas podem ser minhas. Me chama. Pode não parecer, mas me importo com cada nota sofrida que tocas sozinho pela manhã, dedilhando a melodia da mesma canção. Me deixa sugerir novos acordes, alegrar teu violão? Eu te percebo e nosso lugar é comum. É um pedido de resgate, pra ambos, façamos as pazes, sejamos doces e deixemos que só o amor seja irredutível.
Café do molhe Perguntavas-me (ou talvez não tenhas sido tu, mas só a ti naquele tempo eu ouvia) porquê a poesia, e não outra coisa qualquer: a filosofia, o futebol, alguma mulher? Eu não sabia que a resposta estava numa certa estrofe de um certo poema de Frei Luis de León que Poe (acho que era Poe) conhecia de cor, em castelhano e tudo. Porém se o soubesse de pouco me teria então servido, ou de nada. Porque estavas inclinada de um modo tão perfeito sobre a mesa e o meu coração batia tão infundadamente no teu peito sob a tua blusa acesa que tudo o que soubesse não o saberia. Hoje sei: escrevo contra aquilo de que me lembro, esta tarde parada, por exemplo. Manuel António Pina.
Auto-retrato Provinciano que nunca soube Escolher bem uma gravata; Pernambucano a quem repugna A faca do pernambucano; Poeta ruim que na arte da prosa Envelheceu na infância da arte, E até mesmo escrevendo crônicas Ficou cronista de província; Arquiteto falhado, músico Falhado (engoliu um dia Um piano, mas o teclado Ficou de fora); sem família, Religião ou filosofia; Mal tendo a inquietação de espírito Que vem do sobrenatural, E em matéria de profissão Um tísico profissional. Manuel Bandeira.
Torrencial Olhos goticulados pela chuva no vidro a folha não aguenta o peso da água [desprende-se o telhado não suporta a queda do céu [desaba o mundo cai lá fora e os olhos nem piscam a atenção é toda deles até os gritos histéricos do quarto ao lado são abafados a noite troveja alto os ouvidos morrem em paz. Lara Amaral.
André DahmerPor Rafael Bessa Muitos já conhecem o André Dahmer como o desenhista e quadrinista autor das tirinhas dos Malvados, famosas pelo humor ácido e crítico. Descobrir que Dahmer como poeta é tão ou mais certeiro foi minha grata surpresa. Nascido no Rio de Janeiro em 1974, seus poemas oscilam em proximidade e distância com o estilo dos quadrinhos – há uma aura de sarcasmo e questionamento que permeia boa parte dos escritos. Mas o ponto de vista subjetivo e o caráter contemplativo dos poemas são os pontos que sobressaem ao casarem com o formato moderno do verso livre. André Dahmer traduz a estética e os afetos da contemporaneidade: breve, incerto, cotidiano. Tocando a excelência sempre sem querer, no exercício de só deixar correr o conflito que lhe é intrínseco. André Dahmer publicou seu livro de poemas A Coragem do Primeiro Pássaro em 2015 pela editora Lote42. Além de ser autor de outros 7 livros como desenhista. Publica diariamente seus quadrinhos nos jornais Folha de S.Paulo e O Globo, além de já ter colaborado com publicações como o Jornal do Brasil, o portal G1 e as revistas piauí, Caros Amigos e Sexy. 1 uma música salvou minha vida quando eu nascia de saudades de você ainda hoje cozinho porções para duas pessoas sei me virar sozinho sei me cuidar muito bem telegrama da minha amiga morte: na falta de árvores abrace um poste 2 ela me deixou com cara de quem apanhou da vida as bolsinhas de gordura de olhos que me lavam não raro até o pescoço já não passo um só dia sem tomar banho quando choro de pé cobra que bebe do próprio veneno se choro deitado gota que encontra lar no meu ouvido 3
permaneço calmo antes de você chegar aos pés do seu pescoço avisto um lóbulo que suporta o fardo do outro e da prata penso como é triste revê-la vestida se sinto sua carne de anjo a rosnar pela casa preparo minha cama do tamanho da ásia Para os que Virão Como sei pouco, e sou pouco, faço o pouco que me cabe me dando inteiro. Sabendo que não vou ver o homem que quero ser. Já sofri o suficiente para não enganar a ninguém: principalmente aos que sofrem na própria vida, a garra da opressão, e nem sabem. Não tenho o sol escondido no meu bolso de palavras. Sou simplesmente um homem para quem já a primeira e desolada pessoa do singular - foi deixando, devagar, sofridamente de ser, para transformar-se - muito mais sofridamente - na primeira e profunda pessoa do plural. Não importa que doa: é tempo de avançar de mão dada com quem vai no mesmo rumo, mesmo que longe ainda esteja de aprender a conjugar o verbo amar. É tempo sobretudo de deixar de ser apenas a solitária vanguarda de nós mesmos. Se trata de ir ao encontro. (Dura no peito, arde a límpida verdade dos nossos erros.) Se trata de abrir o rumo. Os que virão, serão povo, e saber serão, lutando. Thiago de Mello.
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Julho 2017
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