Poema Começado do Fim Um corpo quer outro corpo. Uma alma quer outra alma e seu corpo. Este excesso de realidade me confunde. Jonathan falando: parece que estou num filme. Se eu lhe dissesse você é estúpido ele diria sou mesmo. Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear eu iria. As casas baixas, as pessoas pobres, e o sol da tarde, imaginai o que era o sol da tarde sobre a nossa fragilidade. Vinha com Jonathan pela rua mais torta da cidade. O Caminho do Céu. Adélia Prado.
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Desde sempre em mim Contente. Contente do instante Da ressurreição, das insônias heroicas Contente da assombrada canção Que no meu peito agora se entrelaça. Sabes? O fogo iluminou a casa. E sobre a claridade do capim Um expandir-se de asa, um trinado Uma garganta aguda, vitoriosa. Desde sempre em mim. Desde Sempre estiveste. Nas arcadas do Tempo Nas ermas biografias, neste adro solar No meu mudo momento Desde sempre, amor, redescoberto em mim. Hilda Hilst.
A um ausente Tenho razão de sentir saudade, tenho razão de te acusar. Houve um pacto implícito que rompeste e sem te despedires foste embora. Detonaste o pacto. Detonaste a vida geral, a comum aquiescência de viver e explorar os rumos de obscuridade sem prazo sem consulta sem provocação até o limite das folhas caídas na hora de cair. Antecipaste a hora. Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas. Que poderias ter feito de mais grave do que o ato sem continuação, o ato em si, o ato que não ousamos nem sabemos ousar porque depois dele não há nada? Tenho razão para sentir saudade de ti, de nossa convivência em falas camaradas, simples apertar de mãos, nem isso, voz modulando sílabas conhecidas e banais que eram sempre certeza e segurança. Sim, tenho saudades. Sim, acuso-te porque fizeste o não previsto nas leis da amizade e da natureza nem nos deixaste sequer o direito de indagar porque o fizeste, porque te foste. Carlos Drummond de Andrade.
à beira do insuportável essa qualidade rara ser insubordinável Alice Ruiz.
A flor da solidão Vivemos convivemos resistimos cruzámo-nos nas ruas sob as árvores fizemos porventura algum ruído traçámos pelo ar tímidos gestos e no entanto por que palavras dizer que nosso era um coração solitário silencioso silencioso profundamente silencioso e afinal o nosso olhar olhava como os olhos que olham nas florestas No centro da cidade tumultuosa no ângulo visível das múltiplas arestas a flor da solidão crescia dia a dia mais viçosa Nós tínhamos um nome para isto mas o tempo dos homens impiedoso matou-nos quem morria até aqui E neste coração ambicioso sozinho como um homem morre cristo Que nome dar agora ao vazio que mana irresistível como um rio? Ele nasce engrossa e vai desaguar e entre tantos gestos é um mar Vivemos convivemos resistimos sem bem saber que em tudo um pouco nós morremos Ruy Belo.
A CANÇÃO DO AFRICANO Lá na úmida senzala, Sentado na estreita sala, Junto ao braseiro, no chão, Entoa o escravo o seu canto, E ao cantar correm-lhe em pranto Saudades do seu torrão... De um lado, uma negra escrava Os olhos no filho crava, Que tem no colo a embalar... E à meia voz lá responde Ao canto, e o filhinho esconde, Talvez p’ra não o escutar! “Minha terra é lá bem longe, Das bandas de onde o Sol vem; Esta terra é mais bonita, Mas à outra eu quero bem! O Sol faz lá tudo em fogo, Faz em brasa toda a areia; Ninguém sabe como é belo Ver de tarde a papa-ceia! Aquelas terras tão grandes, Tão compridas como o mar, Com suas poucas palmeiras Dão vontade de pensar... Lá todos vivem felizes, Todos dançam no terreiro; A gente lá não se vende Como aqui, só por dinheiro.” O escravo calou a fala, Porque na úmida sala O fogo estava a apagar; E a escrava acabou seu canto, P’ra não acordar com o pranto O seu filhinho a sonhar! O escravo então foi deitar-se, Pois tinha de levantar-se Bem antes do Sol nascer, E se tardasse, coitado, Teria de ser surrado, Pois bastava escravo ser. E a cativa desgraçada Deita seu filho, calada, E põe-se triste a beija-lo, Talvez temendo que o dono Não viesse, em meio do sono, De seus braços arrancá-lo! Castro Alves.
Solidão é um nome Que inventaram pra te convencer Que não basta ser humano é preciso sempre pertencer Se todo mundo é só no fundo E tem um só nada inato em cada um E ele é o bem mais caro que nos une Mais que qualquer deus ou país Solidão é um nome De tão leve a gente quer erguer Pra mostrar que foi engano A gente tem que sempre independer Depender de sempre independer Se todo mundo é só no fundo E tem um só nada inato em cada um E ele é o bem mais caro que nos une Mais que qualquer deus ou país Bendita solidão de cada um Sem ela não existe amor algum Beto Cupertino.
Canta América Não o canto de mentira e falsidade que a ilusão ariana cantou para o mundo na conquista do ouro nem o canto da supremacia dos derramadores de sangue das utópicas novas ordens de napoleônicas conquistas mas o canto da liberdade dos povos e do direito do trabalhador... Solano Trindade.
Inscrição na Areia O meu amor não tem importância nenhuma. Não tem o peso nem de uma rosa de espuma! Desfolha-se por quem? Para quem se perfuma? O meu amor não tem importância nenhuma. Cecília Meireles.
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Julho 2017
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