Tu queres sono: despe-te dos ruídos, e dos restos do dia, tira da tua boca o punhal e o trânsito, sombras de teus gritos, e roupas, choros, cordas e também as faces que assomam sobre a tua sonora forma de dar, e os outros corpos que se deitam e se pisam, e as moscas que sobrevoam o cadáver do teu pai, e a dor (não ouças) que se prepara para carpir tua vigília, e os cantos que esqueceram teus braços e tantos movimentos que perdem teus silêncios, o os ventos altos que não dormem, que te olham da janela e em tua porta penetram como loucos pois nada te abandona nem tu ao sono. Ana Cristina Cesar.
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SINTO Saudade carregada, Saudade pesada Continua sendo saudade, Mas não com cheiro de chá de cidreira E biscoitos assados na hora, na casa da avó. Ou um domingo de sol no parque, Farrinha com os amigos. Saudade com cheiro de mágoa Lágrima derramada. Ingrid Carrafa.
a Gelsa e Álvaro Ribeiro da Costa Brasília Desenhada por Lúcio Costa Niemeyer e Pitágoras Lógica e lírica Grega e brasileira Ecuménica Propondo aos homens de todas as raças A essência universal das formas justas Brasília despojada e lunar como a alma de um poeta muito jovem Nítida como Babilónia Esguia como um fuste de palmeira Sobre a lisa página do planalto A arquitectura escreveu a sua própria paisagem O Brasil emergiu do barroco e encontrou o seu número No centro do reino de Ártemis — Deusa da natureza inviolada -- No extremo da caminhada dos Candangos No extremo da nostalgia dos Candangos Athena ergueu sua cidade de cimento e vidro Athena ergueu sua cidade ordenada e clara como um pensamento E há no arranha-céus uma finura delicada de coqueiro. Sophia de Mello Breyner.
SONETO DAS DEFINIÇÕES Não falarei de coisas, mas de inventos e de pacientes buscas no esquisito. Em breve, chegarei à cor do grito, à música das cores e do vento. Multiplicar-me-ei em mil cinzentos (desta maneira, lúcido, me evito) e a estes pés cansados de granito saberei transformar em cataventos. Daí, o meu desprezo a jogos claros e nunca comparados ou medidos como estes meus, ilógicos, mas raros. Daí também, a enorme divergência entre os dias e os jogos, divertidos e feitos de beleza e improcedência. Carlos Pena Filho.
Malú Nunes PRIMEIRA EPÍSTOLA A ELA eu sempre me perguntava, naquele outro tempo, como estariam nossos nós depois que o amor chegasse ao fim. imaginava um vácuo, uma não-relação, os olhos revirando de aversão quando um fulano viesse falar sobre você. e o peito pesado, destroçado, eterno convalescente. o disco arranhando, repetindo o roteiro do nosso desencontro naquela música da Luiza que falava sobre a gente. confesso que a ouvi pouquíssimas vezes depois da minha partida, sempre sob a coragem etílica, aquela dos ímpetos românticos que fazia dançar meus dedos sobre a tela do celular na tentativa de chamar sua atenção e afastar a saudade. o álcool antes de virar ressaca, humilha. o caso é que hoje me dei conta que há muito não lhe escrevo – e a primeira lembrança desse futuro do pretérito a respeito de nosso término se deu quando me peguei sorrindo e agradecendo à vida por ela ter nos presenteado com um recomeço. agora você dorme em outro abraço, mas terá sempre os meus braços para agarrar quando tudo parecer ruir. o seu beijo preferido também é de outro alguém, mas o colo que te acalma e protege ainda está aqui. eu continuo sendo o seu lar e em sua casa nunca serei visita. os livros de amor não fazem jus à nossa história, ela ainda espera por mim para ser retratada (um dia). nossas cicatrizes são a prova de que atestamos Lavoisier a facadas, lentamente. aquele amor eloquente e destrutivo deu lugar à ternura de um amor manso, respaldado pelo companheirismo de sempre. e é tão bonito, menina! bonito que dói. não aquela dor sôfrega de suspiro pesado que lateja a cabeça, mas uma dor gostosa de adolescente que colocou o primeiro piercing e se sente corajoso e orgulhoso daquela orelha vermelha, em chamas, mas enfeitada. foi um prazer crescer ao seu lado e ter contigo inúmeras primeiras vezes. é incrível permanecer na sua estrada caminhando de braços dados sob a proteção do malandro. você bem sabe que quando lá de Aruanda começaram a consertar meu mundo da pá virada aqui, foi teu afeto constante que me segurou. obrigada por não desistir. por fim, minha amiga, desejo-lhe apenas sorte porque a força, a coragem e a grandeza já refletem no brilho verde dos seus olhos. com o sempre latente, mas agora tranquilo amor.
até breve. entrei no beco das putas que cobram pouco em que as palavras são silenciosas em que o sangue e a bile cantam com olhos ao escorrer do coração à vagina três dias por mês sangue fétido de bile o último mistério do elêusis pitonisa-gueixa assassina fria faço-me vadia e te alforrio, homem deixo-me sangrar adrede para te ver secar para sorrir bem nos teus olhos quando não mais sentir amor ou ira e tuas lágrimas mas que peninha, bozo me comoverão como o cheiro da lama ao bocejar do esgoto. Fabíola Lacerda.
POEMA SOBRE A RECUSA Como é possível perder-te sem nunca te ter achado nem na polpa dos meus dedos se ter formado o afago Sem termos sido a cidade nem termos rasgado pedras sem descobrirmos a cor nem o interior da erva Como é possível perder-te sem nunca te ter achado minha raiva de ternura meu ódio de conhecer-te minha alegria profunda Maria Teresa Horta.
Malú Nunes PRIMEIRA EPÍSTOLA A LUISvocê não sabe, mas meus cabelos estão cada dia mais brancos. talvez isso seja o universo me lembrando que involuntariamente tenho em mim traços teus, no sangue, nos olhos, na boca contraída quando conto mentiras - dessas tenho me livrado a cada dia mais, aprendi com você sobre a importância de ser honesta todas as vezes em que descobri ser falsa a promessa da tua presença. eu também tenho fumado muito, você detestaria se estivesse aqui, sumiria com minhas carteiras de Marlboro e faria discursos sobre como se livrou do vício e de como faz mal, mas aproveito tua covardia mascarada pela desculpa de que na verdade você tem um jeito estúpido de amar, para tragar forte, com ódio e vontade pulando no teu eterno carnaval. eu queria que você soubesse que neste ano recuperei minha fé, assentei minhas forças. estou tentando andar nas linhas que me foram concedidas por Oxalá. no plano terreno tenho por minha casa um terreiro e por pai um Exu. Araruê! Salve a força de seu Zé Pilintra! nas conversas com o malandro me descobri gigante e imensamente ferida. as suas falhas fagulham em meu pulso, dão nó no peito mesmo quando acredito não sentir mais nada. você não sabe, mas eu escolhi fazer parte da tua vida ainda em Aruanda quando recebi do pai maior a tarefa de aprender a perdoar nesta encarnação. você é o que chamam de carma, razão dos meus fios brancos e grossos, das olheiras fundas, do medo filho da puta de encarar teu rosto já velho e vociferar o silêncio de todos esses anos, te desafiando a demonstrar afeto, consideração. você não sabe, mas eu escrevo. e hoje, mesmo acreditando que você não seja digno do meu tempo ou coragem, as palavras são tuas porque por algum motivo eu também acredito no teu coração machucado. ele parece muito com o meu. nossas semelhanças fazem meu grito por perdão transpassar a dor em meu peito, mas você é uma muralha intransponível e do lado de dentro do concreto não consegue me ouvir. eu sou o sopro que passa no teu ouvido como um alerta quase inaudível de que algo está fora de ordem. você afasta com as mãos meu zumbido como quem acena dizendo adeus, convicto da estupidez, mas ignorando a intuição. eu te escolhi e nem sei porquê, mas oxum me diz que é com teu andar torto e contido, através do amor que me foi omitido, que vou de encontro ao caminho da evolução. Oraieiê, minha mãe! dei o primeiro mergulho em tuas águas e como é maravilhoso não perder o fôlego na travessia. sou forte como um touro e frágil como o acaso. ainda não sei perdoar, mas deixei sangrar a ferida. só cura depois que estanca. espero escorrendo. viva. porque você carrega meu sangue, mas não aprisiona mais minha alma. aguardo revê-lo em breve para o acerto de nossas contas.
Com o amor que ainda resta por teima ou otimismo, Lia. É IMPORTANTE FODER É importante foder (ou não foder)? É evidente que não, não é importante. Fode quem fode e não fode quem não quer. Com isso ninguém tem nada Mas mesmo nada A ver. O que um tanto me tolhe é não poder confiar Numa coisa que estica e depois encolhe, Uma coisa que é mole e se põe a endurar e A dilatar a dilatar Até não se poder nem deixar andar Para depois se sumir E dar vontade de rir e d’ir urinar. Isso eu o quis dizer naquele verso louco que tenho ao pé: “O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é ”Verso que, como sempre, terá ficado por perceber (por mim até). Também aquela do “outrora-agora” e do “ah poder ser tu sendo eu ” foi um bom trabalho. Para continuar tudo co’a cara de caralho Que todos já tinham e vão continuar a ter Antes durante e depois de morrer. Mário Cesariny.
Malú Nunes PRIMEIRA EPÍSTOLA A RAFAELmeu caro,
não consigo escrever. a vida tem saído do controle e desta forma nada sai no papel. as palavras que lhe escrevo agora vêm de um lapso de sanidade impulsionado pela memória da presença de Xangô em minha coroa. ainda assim sou injusta contigo: ofereço sinceras desculpas pelo não escrito, fomentadas no silêncio falso da inspiração. mas não sei de fato explicar as razões que desmotivam minha prática literária. tem acontecido muita coisa e ao mesmo tempo nada. há um demônio rasgando meu peito à dentadas, mastigando trinta vezes minhas entranhas antes de cuspi-las no espelho do meu quarto. penso que sou eu querendo sair, respirar liberdade, encontrar Deus. tenho saído sem chegar a lugar algum e nesses dias o demônio me destroça: joga cachaça por cima de cada pedaço de carne que arranca e ri e fuma e grita. tripudia nas águas de Oyá que moram em meus olhos. definitivamente o demônio sou eu. querendo se desfazer da podridão causada pelo desamor - próprio e alheio -, cuspindo no reflexo sujo e barato que inventei e admirei por entre o pavilhão espelhado de minha existência até agora. e isso é evolução, esse desencarne da alma através da força da fé que tenho em mim mesma. eu moro no fogo que lateja em meu chacra frontal quando vou de encontro aos meus guias. arde em mim uma grandeza ainda não explorada pela falta de coragem de ser. o demônio é minha cura, minha salvação. veja bem, já me perdi em tanta ideia ao começar este discurso persuasivo de perdão e nem percebi que, desta forma, volto a brincar com as palavras na tentativa de lhe traduzir as sinapses incessantes do meu cérebro mal aproveitado. é neste momento que, além de lhe aporrinhar com justificativas contraditórias, percebo a necessidade de agradecer do fundo da alma por ter me oferecido, inconscientemente, o ombro para acolher tantas lamúrias e reflexões e a vontade de me apaixonar novamente por quem sou. Mande a Portugal as lembranças que não tenho de seus vinhos e mares. A você, a saudade e o carinho sempre presentes aqui em terras tupiniquins. |
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Julho 2017
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